A falta de clareza sobre a organização das turmas e espaços físicos na volta às aulas presenciais na Educação Infantil, e dúvidas sobre como responder às famílias em relação às atividades que podem vir a ser realizadas com as crianças no ambiente doméstico, são as principais preocupações dos educadores e gestores públicos que trabalham com a primeira infância. Pelo menos, foram as dúvidas dos participantes do webinar promovido pelo Programa Parceria pela Valorização da Educação, do Instituto Votorantim, na quarta-feira, 3 de junho, com a presidente da Avante – Educação e Mobilização Social, Maria Thereza Marcilio, tendo como público-alvo os profissionais das Secretarias de Educação de Municípios.
Até o momento, não há protocolos publicados no Brasil sobre a volta às aulas pós-isolamento social causado pela pandemia da Covid-19, nem para a educação púbica nem para a privada. Essa situação está afetando os profissionais da Educação. “O planejamento da volta pós-pandemia, nesse momento, torna-se mais criterioso que a disponibilização das atividades remotas. Os neurônios queimam. Rs”, registrou, via chat, Antonia Rita Monteiro.
Em sua apresentação no webinar “COVID-19: Os Desafios da Educação Infantil Durante e Pós-Pandemia”, Maria Thereza Marcilio citou algumas medidas que estão sendo aplicadas em outros países que já retornaram à sala de aula, como a França. O País realizou uma abertura gradual das escolas em maio desse ano e uma semana depois precisou fechar 40 delas por registro de casos de COVID na comunidade escolar. Para abertura, os franceses reduziram o número de crianças por professor nas salas de aula e estabeleceu sistema de rodízio. Porém, a presidente da Avante questiona se essa seria uma boa medida para o Brasil, em função das jornadas de trabalho das famílias, em especial das mães que criam seus filhos sozinhas e teriam necessidade de deixar as crianças nas creches. “Cruzar a experiência do outro com a nossa realidade, e aprender, para garantir o cuidado com a saúde das crianças, dos profissionais, dando segurança às famílias é o que deve ser feito, sem perder de vista que o direito a uma educação de qualidade para todas as crianças é o compromisso primeiro, disse Maria Thereza.
Para ela, é bom ficar claro que não estamos voltando das férias ou de um longo período de descanso. E sugere que o retorno seja gradual, acolhendo primeiro os profissionais da Educação Infantil e, num segundo momento, as famílias, para então, num terceiro momento, receber os alunos. Isso porque será necessário entender, de início, como se dará a rotina com as crianças, que envolve desde o café da manhã, a uma troca de fraldas, por exemplo; ao número de alunos por turma e até mesmo ao uso de espaços externos para as brincadeiras. Sabendo-se que muitas escolas não dispõem de uma boa estrutura física que permita a sociabilização fora das minúsculas salas de aula.
Sobre o diálogo com os pais, a presidente da Avante afirma a necessidade de entender como estão essas famílias, sua situação socioeconômica diante do agravamento das dificuldades causadas pela pandemia e se as crianças estão vivendo num ambiente seguro, com direitos preservados, como a saúde e a alimentação. Aí, então, seria a hora de receber as crianças e ouvi-las – quais os seus sentimentos em relação ao período de isolamento e como estão nessa volta ao convívio do grupo.
As atenções dos educadores também envolvem questões sobre como lidar com as famílias diante de questionamentos do que fazer com as crianças em casa. “O objetivo não é transformar as casas em centros de Educação Infantil, e pais, em professores. Nem mesmo mandar atividades que se intitulem lúdicas. O foco não deve ser em questões formais de cumprimento de horas/aula ou de gestão curricular e sim na aprendizagem, nas interações e brincadeiras, no desenvolvimento integral da criança que aliás são os eixos do currículo da Educação Infantil”, afirmou Maria Thereza. Ela lembra que a criança deve estar no centro desse currículo, que ela aprende brincando e, assim, constrói sua relação com a cultura e seu meio social. Nesse sentido, a presidente da Avante diz que o foco deve estar em assegurar que as crianças tenham tempo para brincar livremente, para participar da vida em família, que seja escutada e que possa ter diferentes experiências com os demais membros da família. A criança aprende brincando. É importante saber se elas estão em segurança e se suas necessidades básicas estão sendo atendidas. Para isso, os profissionais-gestores, professores, coordenadores precisam estabelecer canais de comunicação para chegar até todas as famílias, a escola como instituição não pode desaparecer da vida das crianças e precisa se reinventar em tempos de distanciamento social.
O cancelamento da matrícula, com a retirada da criança da sala de aula já está acontecendo, segundo algumas experiências relatadas pelos educadores. Uma das participantes do webinário, Gilcele Martins Malinconico, questionou via chat: “O que fazer com crianças de 4 e 5 anos cujos pais estão tirando da escola ou não desejem que as mesmas voltem por medo do coronavírus? A criança entra no Ensino Fundamental?” Maria Thereza lembrou que o direito à matrícula no Ensino Fundamental é garantido por lei para todas as crianças que completam a idade de 6 anos, independentemente de ter frequentado a Educação Infantil. Para a educadora, a principal questão envolvida deve ser a de assegurar que as crianças tenham seus direitos de aprendizagem, na faixa etária do zero aos cinco ano, assegurados, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC/2017) – Brincar, Conhecer-se, Participar, Explorar, Expressar e Conviver.
Para evitar a evasão escolar, Maria Thereza disse caber à escola explicar às famílias esse novo contexto e aproximá-las das unidades educacionais, o que ela chama de “derrubar os muros da escola”, no sentido de promover a integração e o diálogo entre os diferentes atores. “Esse é um momento de aprendizado para todos os profissionais e a gente precisa explicar isso para os pais. Vamos derrubar os muros e deixar as famílias chegarem. Elas conhecem bem os seus filhos e filhas. Precisamos reconhecer e valorizar esse lugar que elas ocupam. Vamos criar esse diálogo”, disse Maria Thereza. Neste momento, ela citou um provérbio africano para ilustrar a situação: “É preciso de toda uma aldeia para educar uma criança”.
Avanços e possibilidades de retrocesso – Maria Thereza Marcílio fez uma retrospectiva da Educação Infantil no Brasil, lembrando que existem apenas 32 anos de sua regulamentação desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. Ao longo desse período, citou marcos legais de relevada importância, como a Lei de Diretrizes Bases da Educação (LDB/1996), o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB/2007), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/1990) e as Diretrizes Nacionais Curriculares da Educação Infantil (DCNEI/ 2009), para citar alguns.
“Antes de ser um projeto de futuro, a criança é um sujeito integral, cultural e constituído de direitos assegurados na Constituição Federal. É importante lembrarmos, para não sermos devorados e retrocedermos de tudo o que a gente já construiu. Estamos vivendo um período de tentativa de fragilização das instituições e das conquistas institucionais que o País fez”, afirmou a presidente da Avante em relação à frágil atuação do Governo Federal na pasta, e falta de entendimento da criança e suas formas de aprendizagens.
Nos últimos cinco anos, o Brasil registrou aumento de 12,6% no número de matrículas na Educação Infantil, com o total de 9 milhões de crianças de zero a cinco anos matriculadas em creches e pré-escolas. As redes municipais de ensino respondem por 71,4% das matrículas na Educação Infantil. Os dados revelam ainda que 32% da população de zero a três anos frequentam creches e que a matrícula na pré-escola chega a 92% dos meninos e meninas. “Ainda não atingimos as metas estabelecidas pelo PNE para a Educação Infantil e temos grandes distorções entre as diferentes regiões do País”, reforçou Maria Thereza Marcílio
*Maria Thereza Marcilio é licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia e Mestre em Educação pela Harvard Graduate School of Education, com Formação em Psicologia Social como coordenadora de grupos operativos pelo Instituto Pichon Rivière de São Paulo. É presidente e associada fundadora da Avante-Educação e Mobilização Social. Foi coordenadora e integrante do grupo gestor da Secretaria Executiva da Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), foi membro do grupo de trabalho sobre Avaliação da Educação Infantil, instituído pelo MEC e também membro do grupo de trabalho instituído pelo INEP para elaboração do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Infantil, coordenadora regional para as Américas do Projeto Líderes Globais da Educação Infantil do Fórum Mundial de Educação e Cuidados na Primeira Infância.