Isabelle Deligne é pediatra e membro da Association Pikler-Lóczy France, onde atua há mais de 20 anos, oferecendo formações para educadores e interessados na Abordagem Pikler – um conjunto de ideias e práticas desenvolvidas pela médica húngara Emmi Pikler. Entre os principais pilares da Abordagem estão o estabelecimento de vínculo entre adulto-criança e o respeito ao movimento livre e autonomia das crianças pequenas. Em sua passagem pelo Brasil, Isabelle está ministrando cursos sobre o desenvolvimento das crianças no Rio de Janeiro, e estará em Salvador para um seminário nesta sexta-feira, dia 03 de maio, em parceria com integrantes da Rede Pikler Brasil e com a Avante – Educação e Mobilização Social. Na entrevista, Isabelle fala sobre a importância de que adultos confiem mais nas crianças, estejam disponíveis para compreender suas necessidades, e ofereçam espaços com mais liberdade para experimentação.
Como os profissionais da educação infantil podem dar atenção particular para cada criança, quando trabalham em um contexto de muitas crianças nas salas de aula?
A gente não consegue sair dessa equação se a gente não tiver uma ideia de cooperação. A Abordagem Pikler consiste na ideia de que adultos e crianças vão cuidar um dos outros, para fazer coisas juntos, levando em conta as ideias de cada um. Se a gente tiver uma organização piramidal e hierarquizada, e entender que os educadores são chefes que estão dirigindo uma boiada, é uma catástrofe, um desastre. As crianças não vão bem, elas ficam perdidas e não correspondem ao que os adultos esperam. Só se consegue essa obediência quando o adulto está ali com uma presença muito autoritária, e aí as crianças ficam paralisadas. Mas não é uma maneira saudável para aprender ou para conviver em grupo.
E como o adulto pode deixar de lado essa presença autoritária?
É preciso modular nossas expectativas de acordo com o processo de amadurecimento da criança. A gente não pode exigir que uma criança de dois anos obedeça regras e combinados se não tiver um adulto bem pertinho. No momento em que o adulto que deu o comando sair de cena, ou caso mude um pouco o contexto, a criança não sustenta a regra acordada. O combinado só se dá verdadeiramente quando é feito com uma pessoa específica e em um contexto preciso.
Quais as características dessa primeira fase de socialização?
A socialização primária é o início de um percurso para a autonomia social, isto é, a criança vai se apropriar pouco a pouco das regras para viver e conviver em um ambiente – seja na cidade ou no campo, E ela acontece nos três primeiros anos, quando a criança vai se constituir como sujeito. Na primeira fase da vida, a criança está em um estágio de fusão com a mãe, e com três anos de idade a criança já tem condição de se considerar uma pessoa distinta. E entre essas duas fases, há um longo processo, que passa por uma percepção de “nós dois juntos”, um sentimento muito forte de que ela possa contar com um adulto sólido, ou seja, uma pessoa adulta bem próxima, que se ajuste e adapte às necessidades da criança, aos seus projetos, que vai preparar o ambiente de acordo com o que essa criança tem interesse naquele momento. Nessa fase de socialização primária, as regras vão sendo introduzidas em pequenas doses, e de maneira muito individualizada e particular. Por exemplo, com dois anos de idade, a criança não tem a menor condição de compreender um comando gritado, coletivo, como “-Não pode subir nesse lugar!“. Por outro lado, se uma pessoa que for importante para essa criança chega juntinho, toca nela e diz algo como “-Você precisa se controlar, isso é perigoso, vou tirar essa escada”, de forma particular e individualizada, aí sim a criança tem condições de absorver essa regra, porque parte de uma pessoa com quem ela sabe que pode contar. Só depois dos três anos de idade as crianças são capazes de aprender regras anunciadas de modo geral, ou seja, as regras que vão levar em consideração as pessoas ao seu redor.
Como deve ser o espaço e ambiente das turmas de educação infantil?
É importante que o espaço transmita uma mensagem clara para que a criança possa compreender de imediato o que ela tem que fazer. Que ele não precise solicitar ao adulto, o tempo todo, “-Posso fazer isso, posso fazer aquilo?” ou “Não sei o que fazer!”. No ambiente escolar, em que temos poucos adultos, precisamos organizar o espaço para que as crianças possam ser ativas e menos dependentes de nós, fazendo com que os objetos estejam disponíveis.
Isso pensando em um espaço que as crianças tenham liberdade para explorar, não é mesmo? Porque a restrição dos espaços às crianças pequenas é muito presente em nossa cultura.
Eu não sei porque adultos, que tem uma certa liberdade em sua cabeça, acham que as crianças tem que ficar enjauladas e aprisionadas. A gente sabe que quando as crianças crescem, elas precisam conviver em sociedade e ter iniciativa própria. Para além do diploma, essas são as características que vão nos fazer ter uma vida interessante. Quando você está enquadrando as crianças em uma atividade enjaulada, você mata e sufoca as iniciativas, fazendo com que a criança acredite que a iniciativa dela não tem valor – e a única coisa que tem valor é o que essa pessoa grande e toda poderosa tem a oferecer. O que leva também a muita rivalidade e comparação entre as crianças, ou seja, nós estamos desfavorecendo que elas convivam harmonicamente entre elas. É como se as pessoas tivessem o poder de entrar na cabeça das crianças, de direcionar até o que elas querem pensar e fazer – por preocupação, por falta de confiança. A Abordagem Pikler é um trabalho cotidiano, de equipe, que consiste em confiar nas forças do desenvolvimento dessa criança, em fazer parceria e alianças com essas forças. A criança que vai bem, que se sente amada, vai ter bastante energia para descobrir o mundo, para fazer muitas coisas, mesmo que a gente não precise explicar tudo para ela.
Você poderia dar exemplos de momentos de descoberta e aprendizagem, sem que o adulto esteja comandando a ação?
Para que isso aconteça, é preciso que a criança esteja em um ambiente em que possa encontrar respostas para as perguntas que está fazendo. Nós, adultos, fazemos parte desse ambiente, mas não somos as únicas pessoas e nem somos os únicos recursos. Por exemplo, as crianças com cinco ou seis anos de idade gostam de que na sala tenha um cantinho em que possam fazer experimentos. “Aqui está cheio de sal, vou colocar nesse recipiente, será que vai ocupar o mesmo espaço? Se eu viro esse objeto e faço escorrer o sal, ele cai rápido, ou devagar?” Isso é uma maneira de trabalhar a noção de volume e de formas, e do ponto de vista da metacognição, a criança descobriu que ela pode traçar hipóteses, se enganar, pesquisar, testar, alcançar um objetivo. E aí ela está caminhando para uma vida cheia de curiosidades e encantamentos. Mas é preciso reconhecer que isso causa algum transtorno e bagunça. É claro que é importante e interessante que esse mesmo tema seja apresentado pelo adulto, mas a maneira e forma de compreender, pela experimentação de cada criança é muito mais sólida e se inscreve com mais facilidade no cérebro do que, por exemplo, se todas as crianças estivessem sentadas em roda, assistindo a um adulto fazer essas experiências.
O que chama a sua atenção nas creches e abrigos que conheceu no Brasil?
As primeiras vezes que vim ao Brasil me impactou muito a preocupação dos adultos com que as crianças fracassassem. “-Deixa eu fazer por eles.. Deixa eu ajudar eles… coitadinho.. Pobrezinho.. Ele não vai conseguir!”. Me impressionou muito que o processo da criança se esforçar para conseguir algo fosse visto como “abandono”. O prazer dos bebês ao se esforçarem para conquistar algo não era reconhecido. Imagine a cena de um bebê deitado, se esticando para pegar algo que está do outro lado. É muito difícil para um adulto não se levantar e ir pegar o brinquedo para entregar na mão dele. Outra coisa que eu noto no Brasil é a sedução, como se os adultos precisassem o tempo todo se sentir amados pelas crianças. É como se fosse, de certa forma, enrolar e enganar as crianças. Ao invés de enxergar que adultos e crianças estão juntos diante de uma situação, os adultos mostram uma situação que não é real, com a ilusão de que as crianças vivem em um mundo protegido, sem emoções. Mas, não, as crianças têm emoções muito fortes, desde bem cedo, e estar com eles é estar disponível para acolher essas emoções, de alegria, tristeza ou raiva.
Por Rosa Maria Mattos, entrevista feita no dia 26 de abril de 2019, no Rio de Janeiro