A recente crise mundial, potencializada pela pane sanitária provocada pela pandemia do COVID – 19, revelou a fragilidade do sistema de direitos brasileiros. Nesse período, vivenciamos fortes ameaças aos direitos das crianças e dos adolescentes, a Educação teve suas mazelas expostas e em alguns aspectos estagnou ou retrocedeu, em especial no direito à uma Educação para todos, quiçá em sua almejada qualidade.
Em entrevista ao nosso Portal, Maria Thereza Marcilio, presidente da Avante – Educação e Mobilização Social, mostra toda experiência conquistada com a elaboração de diagnósticos, promoção de formação contínua, defesa de direitos e acompanhamento, ao longo de mais de 26 anos, de cerca de 90 redes de educação em território brasileiro.
Ao longo desse tempo, por volta de 80 mil profissionais da Educação dialogaram com a Avante, que estava atenta, aberta ao diálogo e ativa enquanto surgiam e se consolidavam marcos legais, enfrentamento às ameaças históricas, sociais, políticas e econômicas surgidas no caminho.
É possível acreditar no avanço do desenvolvimento do país? Para ela, o trabalho é grande, os desafios são intensos, mas a superação é possível. Existem leis, políticas públicas, organizações e pessoas atuantes e dispostas a aprender com o passado, manter os olhos no presente e construir um futuro digno para a Educação brasileira.
Pandemia, crise, direitos ameaçados. Há alguma novidade nesse cenário? Ou apenas testemunhamos desafios históricos nos saltar aos olhos?
Em um país continental, com múltiplas diversidades e profundamente desigual, o enfrentamento à emergência sanitária adicionou elementos desestruturantes ao cenário educacional. Considerando-se a história relativamente recente de definição de marcos legais, institucionais e financeiros da educação pública brasileira, em particular da Educação Infantil, e a ausência de um sistema nacional definindo, organizando as atribuições das diferentes instâncias administrativas, orientando o pacto federativo, o impacto das medidas de enfrentamento e a falta de articulação na condução contribuíram para a fragilização da construção da história da educação pública brasileira.
Vivemos um momento de desmonte de direitos, em especial na Educação, qual fator você apontaria como essencial para o enfrentamento de desafios históricos, agora agravados ou expostos, e para a melhoria da qualidade da Educação num cenário como este?
A formação de professores é, indiscutivelmente, uma variável determinante para o alcance de padrões desejáveis de qualidade da Educação Básica. Desde as últimas décadas do século passado, as investigações sobre os fundamentos e as práticas da Educação, e a produção teórica decorrente, evidenciam o caráter investigativo da atividade docente, favorecendo a mudança do paradigma tecnicista (neste, os professores eram vistos como reprodutores de técnicas e métodos, e deveriam ser “instruídos” em cursos de reciclagem ou em treinamentos).
Já o entendimento da docência como uma atividade complexa, envolvendo múltiplos sujeitos, a produção de conhecimento e teias vinculares, traz os professores para o centro da cena em que a capacidade de observação, reflexão e análise da prática para tomada de decisões são aspectos constitutivos da ação docente e, portanto, devem integrar a sua formação inicial.
Essa mudança de paradigma indica também um outro olhar para a formação contínua: ela deixa de ser vista como algo acessório, desconectado do cotidiano da escola e passa a ser vista como essencial, indispensável mesmo, e ligada à formação inicial. O cotidiano dos processos de ensino e de aprendizagem é o objeto de investigação e foco dessa formação. O professor não pode mais ser visto como um “aplicador de métodos”, mas como sujeito autônomo, construtor da sua prática.
Trazer à luz esse cotidiano faz emergir a complexidade da tarefa docente para muito além do conhecimento da matéria ou do objeto de conhecimento a ser oferecido, trata-se de conhecer profundamente o sujeito criança na sua individualidade, nas suas múltiplas necessidades, suas características, seu ambiente de origem, trata-se ainda de analisar vínculos e relações estabelecidos, de organizar ambientes, de estabelecer rotinas flexíveis, de problematizar o cotidiano.
Diante da natureza provisória do conhecimento, algo sempre em construção, e das mudanças na sociedade, é fundamental que a escola se constitua em um espaço permanente de reflexão e aprendizagem para todos que a integram, profissionais e, no caso da Educação Infantil, crianças.
Quais são as consequências ou o impacto dessa mudança de paradigma para educadores e para as escolas?
Essa mudança de paradigma vem acarretar uma crise na comunidade de educadores, visto que a matriz desses profissionais esteve sempre muito ligada a princípios referentes à centralização, diretividade, comando, no que tange às relações; e no que se refere à didática a uma prática reprodutora, executora, nos moldes de uma experiência pessoal anterior como estudante e de uma formação inicial deficitária e distante da escola de Educação Básica.
O cenário educacional se configura de modo geral por um quadro de profissionais que procura se apropriar das teorias de aprendizagem, mas que, na prática, sente-se muitas vezes inseguro, pois estas novas demandas apontam um profissional crítico, reflexivo e, principalmente, produtor de conhecimento. A profissão de professor exige atualização constante e múltiplas competências. Daí decorre a ideia de um processo de formação contínua, em que, no primeiro momento se dá na instituição formadora e, uma vez no exercício da profissão deve se realizar no âmbito da instituição empregadora, no coletivo dos profissionais.
A formação contínua e de qualidade de professores é um caminho realmente possível na prática? Como?
Para nós, da Avante – Educação e Mobilização Social, uma OSC sediada em Salvador, que há 26 anos desenvolve projetos de formação contínua de professores, em parceria e alinhada com a produção de conhecimento nas ciências da educação, essa perspectiva está no DNA de seus projetos e foi sendo construída e reconstruída ao longo dos anos a partir das contribuições de estudos e pesquisas, e da própria reflexão permanente dos integrantes da organização.
Temos o livro Formar para Transformar – o caso do município de Irecê (BA), sobre a experiência de trabalho nessa Rede Municipal ao longo de quatro anos, o Programa Paralapracá, desenvolvido com o apoio do Instituto C&A e realizado em 10 municípios de diferentes estados do Nordeste do Brasil ao longo de sete anos, aprovado como tecnologia educacional pelo MEC/2015, entre outras ações.
Esse trajeto, feito coletivamente com professores, coordenadores pedagógicos e gestores, constituiu-se de observação, análise e reflexão de práticas para novas propostas, leitura e discussão de textos teóricos, viagens de intercâmbio para diferentes lugares, tanto no Brasil como no exterior, apresentação de trabalhos em seminários e congressos com resultados monitorados do impacto na vida das crianças.
Como você vê a atuação do MEC no quesito formação contínua?
Ao longo desses anos, pudemos testemunhar numerosas ações e programas propostos pelo MEC para atender à demanda de formação, mas um olhar apurado revela fragmentação e descontinuidade das políticas voltadas à área. Em 1999, o MEC publicou os Referenciais para Formação de Professores. Já neste século, várias tentativas foram feitas para superar essas fragilidades e é possível levantar um conjunto de iniciativas, especialmente a partir de 2007, com a instituição do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), no qual a formação foi destacada como prioridade e o fomento e articulação de ações destinadas à formação dos docentes da Educação Básica foi atribuído à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Nos anos anteriores ao PDE, até 2004, a atuação do MEC em relação à formação de professores era basicamente supletiva, por meio de financiamento das demandas encaminhadas pelos estados e municípios. Para a execução das demandas, as secretarias recorriam a agências de formação tanto da sociedade civil como de instituições de ensino superior.
Ainda em 2004, buscando dar mais efetividade a sua atuação, o MEC criou uma Rede Nacional de Formação Continuada de Professores de Educação Básica composto por universidades, que se constituiriam em Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação. Essas universidades seriam conveniadas com o MEC, que teria a função de coordená-las e de dar-lhes apoio técnico-financeiro.
Além destas estratégias, o MEC já vinha oferecendo programas de formação de professores para as etapas da Educação Básica, também em parceria com os sistemas de ensino, a exemplo do ProFormação, do ProInfantil e do ProLicenciatura, que visavam a habilitação de professores em exercício.
Especificamente para a formação de professores da Educação Básica, quais foram as principais mudanças conquistadas?
Antes do lançamento do PDE, ocorreram importantes alterações legais e normativas pertinentes à formação e à valorização dos professores da Educação Básica. Com destaque para a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) e a discussão e homologação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação em Pedagogia, definindo-se o perfil do pedagogo, a organização curricular e a duração dos estudos do curso de Pedagogia.
Em 2015, foram aprovadas as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a Formação Inicial e Continuada de Profissionais do Magistério da Educação Básica que explicitam ideias e conceitos atuais como “a formação continuada deve se efetivar por meio de projeto formativo que tenha por eixo a reflexão crítica sobre as práticas e o exercício profissional e a construção identitária do profissional do magistério.” Dessa forma, reconhece-se a importância da formação contínua como elemento-chave para a melhoria da qualidade da educação, embora não suficiente, destacando-se a necessidade de um profissional reflexivo, crítico, criativo e sensível, conhecedor das especificidades da educação da primeira infância como fundamental para a concretização desse objetivo. Ademais, a prática pedagógica e o contexto escolar são o núcleo da formação. Relacionar prática e teoria, a partir da análise das situações vividas e do contexto é o cerne da formação contínua.
Foram anos muito produtivos no sentido de normatizar e qualificar a formação do professor, algo realmente novo no âmbito da Educação Infantil. Obviamente, o esforço na construção dos marcos institucionais e legais não se traduz de imediato em mudança de práticas, eles sinalizam pontos de chegada para uma trajetória que se fará a partir da prática cotidiana das instituições formadoras e nas redes de ensino. Há uma distância entre intenção e gesto, que precisa ser cuidadosamente percorrida, e aí é que se coloca o risco, seja pela descontinuidade, seja pelo descuido.
E quais são esses riscos hoje?
É preciso voltar a 2016 e a aprovação da Emenda Constitucional 95, que instituiu um novo regime fiscal e limites individualizados para as despesas primárias, o que já apontava para dificuldades dos municípios em manter os serviços, atender às demandas sociais e às metas estabelecidas para o setor.
É importante agora retomar o tempo em que fomos atravessados pela existência da pandemia da covid-19. Uma experiência sem precedentes para todas as pessoas: a velocidade de propagação, o desconhecimento do funcionamento do vírus, o impacto dos números de infectados e de óbitos que obrigaram os países a estabelecerem medidas de confinamento e suspensão de atividades, à exceção dos serviços básicos para a manutenção da vida, saúde e alimentação entre eles.
Por paradoxal que pareça, o fechamento das escolas fez emergir questionamentos sobre alguns dos parâmetros da organização escolar até então vigentes, a exemplo de número de crianças, adolescentes, e jovens por sala, horários extensos de atividades em sala de aula, prédios com pouca ou nenhuma área externa, colocando em suspenso as referências sobre a organização e o funcionamento da instituição escolar.
Como seguir em frente, na Educação Básica pública, no atual contexto, após o momento mais crítico de uma pandemia que afetou, de forma drástica, famílias de mais de 700 mil pessoas no Brasil?
Este cenário obriga-nos a refletir sobre o que era oferecido às crianças e às famílias e sobre as condições de trabalho dos profissionais. As desigualdades históricas e os desafios da educação pública no Brasil, que como política pública de atendimento a um direito básico é muito recente e, portanto, ainda por ser reconhecida e valorizada pela sociedade, trazem à tona questões sobre como proceder, o quê fazer na abertura das escolas:
Será que retornar àquela escola é o que se deseja? Como acolher crianças, profissionais e famílias vindos de experiência tão desafiadora? O que se aprendeu nesse período sobre a instituição de educação infantil como equipamento básico para a aprendizagem e o desenvolvimento pleno da criança? Sobre a necessidade imperiosa de uma relação dialógica e acolhedora entre a família e a escola? Sobre a necessidade de pensar a Educação Infantil como espaço de articulação de diferentes setores: saúde, proteção, segurança, cultura, lazer? Sobre as diversas possibilidades de agrupamentos, de uso de espaços e materiais? Sobre diferentes formas de organizar rotinas e procedimentos? Sobre a fundamental relação do cuidar e do educar? Enfim, como afirmar a Educação Infantil como um elemento imprescindível para a formação de sujeitos curiosos, abertos e solidários.
Essas questões demandam que se avance na prática de conceitos e princípios já estabelecidos nos documentos: gestão democrática, escuta de todos que participam da vida escolar, organização de espaços saudáveis, seguros e estimulantes para as crianças, rotinas flexíveis centradas na criança como sujeito de direitos e que favoreçam seu pleno desenvolvimento, agrupamentos variados e compatíveis com as necessidades de atenção e interação entre crianças e adultos, comunicação permanente e atenciosa entre escola e família, entendendo a importância da parceria para a criança, diálogo com a comunidade do entorno de forma a que os saberes e costume locais sejam valorizados e integrem as propostas pedagógicas.
Ou seja, fazer do limão uma limonada o mais saborosa possível…
Sim, o que este momento oferece é a oportunidade de fortalecer a defesa e a prática de um processo formativo comprometido com a práxis e o cotidiano institucional, e uma formação contínua centrada nos processos de fundamentação e reflexão daquelas práticas e, portanto, com um currículo que emerge do ambiente institucional, com foco nos sujeitos, nas relações, nos contextos, nos materiais e nas rotinas, ou seja, no ambiente educacional e na comunidade. Entretanto, os riscos inerentes a tal proposição são os que estão presentes desde sempre, mas agravados desde 2018 pela ausência de políticas, interrupção de programas e questionamentos sobre o financiamento da educação e sobre a própria profissão docente.
São muitos os desmontes: um pacto federativo que não se concretiza na prática pelo qual o ente mais frágil – o município – arca com a maior parte dos serviços à população, incluindo a Educação Infantil; a dificuldade de traduzir no orçamento e nos planos de governo a suposta prioridade da Educação como política de estado; a demonização da profissão docente, os cortes nos orçamentos das universidades e nos órgãos de pesquisa; o desprezo pela ciência; o retorno a ideias e concepções ultrapassadas tal como colocar a Educação Infantil como etapa preparatória para o Ensino Fundamental; os “arranjos” para atender a demanda de vagas em creches e pré-escolas; a discussão de propostas esdrúxulas como o homeschooling; os interesses financeiros se sobrepondo às concepções já consolidadas mundialmente, como o caso dos apostilados e livros didáticos para as crianças pequenas são algumas delas.
E o que se deve esperar do professor ao final desse processo?
Tais riscos exigem que, além da fundamentação teórica e da reflexão sobre a prática, os processos formativos contribuam para uma formação política de modo que os professores sejam militantes da causa até que as intenções se transformem efetivamente em gestos concretos e coerentes com uma concepção de qualidade na Educação Infantil que vem sendo pautada desde a Constituição Federal de 1988.
Enfim, que não se perca de vista a ideia de uma formação crítica, que se pergunte sempre a quem a Educação está servindo; que não esqueçamos, tal como Edgard Morin já nos mostrou, que o mais importante na Educação é ensinar para a compreensão, é se colocar no lugar do outro, é ter compaixão. Assim fazendo, poderemos ter esperança em um mundo melhor para todos e todas.