Como uma visita à Índia, pelo caminho da educação, e um encontro entre pessoas interessadas em transformar o mundo, principalmente, por meio das instituições de ensino, podem se tornar uma referência e fortalecer a rede de ações em torno da causa? Sobre isso nos falou Maria Thereza Marcilio, gestora institucional da Avante – Educação e Mobilização Social, ao compartilhar seus encontros com Kiran Sethi, mentora da metodologia Design for Change (planejar para a mudança), que transformou a Riverside School, também criada por ela, em umas das dez melhores da Índia, em termos acadêmicos. E uma referência mundial quando o assunto é desenvolver habilidades socioemocionais de seus estudantes. Maria Thereza foi em 2013, com Ana Luiza Buratto, consultora associada da Avante, integrando o grupo do EduRetreat aquele ano – um intercâmbio que disponibiliza programas globais de desenvolvimento orientados por profissionais de renome no meio acadêmico, idealizado e coordenado pela indiana, Vashima Goya.
O alvo destes grupos é acessar ideias sobre educação e diversidades, no sentido de ampliar a visão de mundo dos participantes. O grupo do qual a Avante fez parte durante o intercâmbio abordou discussões em torno das ideias dos principais pensadores do país (Gandhi, Aurobindo, Tagore e J. Krishnamurti) e visitou instituições de referência, entre elas a Riverside School, onde tiveram a oportunidade de conhecer Kiran Sethi pessoalmente.
O Design for Change aposta no poder das crianças e adolescentes quando acreditam em si mesmos (“eu posso”). E no intuito de conquistarem a confiança em sua capacidade de transformar uma realidade, os meninos e meninas são estimulados a identificar um problema que os aflige e que gostariam de resolver; dão ideias de como a situação poderia melhorar e escolhem a opção que lhes pareça mais promissora. “O que eles desenvolvem na escola faz com que os (as) meninos (as), desde pequenos, assumam o papel de protagonistas da mudança de algo que lhes incomoda, que está lhes afligindo. Eles valorizam o sentir como primeiro passo para que a proposta de mudança seja algo que surja da integralidade do sujeito inteiro, não só da razão. Depois estimulam a imaginação – imagine o que você pode fazer para resolver sua aflição, quem você precisa mobilizar, que ferramentas você precisa usar; planeje; faça e depois compartilhe com as pessoas. É assim que age a escola de Kiran”, explica Maria Thereza Marcilio em entrevista ao site da Avante, e conta como este contato se tornou uma semente para que a Avante adotasse a proposta em seus projetos.
Avante – O que mais a impressionou na proposta da Riverside?
Maria Thereza –Avante – Quando nós visitamos a escola, cada um do nosso grupo, formado por 12 pessoas, foi guiado por um aluno. E eu fui guiada por uma garota de 12 anos que estava na sexta série mais ou menos. Essa menina me impressionou profundamente. Como ela conhecia bem a instituição! Como ela tinha uma relação afetiva com aquele lugar! Como ela sabia tudo que estava acontecendo, desde a educação infantil até o ensino médio! E a forma como ela me explicava os programas; ela ia explicando cada coisa que a gente ia vendo e dando a razão por trás de tudo aquilo. Então eu sentia, além da forte afetividade com a instituição, um grau de autonomia intelectual muito grande. Ela tinha uma capacidade imensa de argumentar.
O que mais me impressionou nela no final das contas foi uma inteireza, uma coisa de integração de cabeça e coração. Tanto que, ao terminarmos o tour pela escola, nós fizemos a ela a pergunta que repetimos, como parte do programa do intercâmbio, a todos as pessoas que íamos encontrando ao longo do caminho; por que as pessoas devem ir á Índia? Ela deu uma resposta que eu acredito que dificilmente adultos dariam. Primeiro ela pensou – não foi uma resposta dada de qualquer forma. Depois ela disse: “a Índia vale a pena, pois aqui tem muito avanço tecnológico e científico junto a uma cultura milenar e a uma forte espiritualidade”. E finalizou dizendo que na Índia as pessoas podem encontrar a paz, porque a gente costuma enxergar o outro e integrar conosco e essa menina é um resultado, não só, obviamente, da Riverside School, que ela não é só da escola, mas do vínculo que ela estabeleceu com a instituição. Isso é difícil de ver em contextos escolares comuns. E não foi só ela, a gente ouviu outros depoimentos similares.
Avante – E vocês tiveram contato com o quadro de professores da instituição?
Maria Thereza – Sim. Depois fizemos uma reunião com os professores e com Kiran, na sala dos professores. O depoimento deles, a forma como se vinculam com a escola, as atitudes, revelam, exatamente, um ambiente acolhedor, produtivo intelectualmente, estimulante e afetivo.
Avante – Vocês tiveram a oportunidade de testemunhar algum momento da prática pedagógica da Riverside?
Maria Thereza – Tivemos. E foi uma das coisas mais marcantes. Primeiro é importante lembrar que a Índia tem problemas gravíssimos, alguns muito semelhantes aos nossos, só que numa escala muito maior porque eles têm muito mais gente, um bilhão e meio de pessoas, num território muito menor que o nosso, numa civilização milenar. Então, alguns problemas existem também em escala muito maior. Por outro lado, eles também encontram caminhos de enfrentamento muito criativos.
O Trabalho Infantil, por exemplo, é um problema sério na Índia. Bem mais sério do que aqui no Brasil porque, além de não terem nenhuma regulamentação, os (as) meninos (as) trabalham em coisas pesadíssimas e trabalham sem remuneração, são muito explorados. Então, a realidade é muito dura. E o fabrico de incenso é uma dessas situações. Nele, a criança é a principal mão de obra. E esta é uma tarefa difícil, dura, porque envolve força e é muito poluente.
Então, nessa escola privada, que com certeza não é frequentada pelas pessoas mais pobres do país, assistimos uma experiência na qual meninos e meninas de 10, 11 anos estavam debaixo de uma tenda, num pátio da escola, trabalhando, fabricando incenso. E essa atividade era relacionada a uma disciplina que tinha por objetivo fazê-los experimentar certas realidades, para depois falarem sobre isso e levantarem propostas de transformação.
E era isso que elas estavam fazendo: o experimento de viver como quem trabalha nessa coisa. Elas ficavam dentro dessa cabana com um professor por perto. No entanto, não com uma atitude de professor, mas com a atitude de patrão que está ali observando seus empregados. Eles não podiam comer, nem beber. Eles tinham que vivenciar as mesmas condições em que as crianças trabalham. Eles só tinham direito a um como d’água quando terminava a jornada de 8 horas, sem o direito de conversar.
Assim, eles viviam exatamente a situação das crianças fabricantes de incenso do país.
Avante – A Riverside é uma escola particular, certo? Como os familiares se posicionavam em relação a isso? Não havia questionamentos sobre o objetivo da proposta?
Maria Thereza – Sim é uma escola de elite… é preciso ter o consentimento da família, a família precisa ser muito parceira da escola e a escola precisa ter muita certeza do que está fazendo.
Qual é a ideia? Ela quer criar pessoas que sejam solidárias. A escola é maravilhosa, mas não é só para aprender conteúdo. Você tem que aprender a servir. E para servir você tem que entender como é que o outro vive, tem que se colocar no lugar do outro. Então, isso foi um exemplo, foi o que eu vi, eu posso dizer que vi os meninos lá. Vimos a instalação, vimos tudo, vi eles fabricando incenso, já tinha a pilhazinha de incenso do lado de cada um e a professora nos disse que eles ficavam naquela atividade por pelo menos três dias, nesse regime.
Vimos muitas outras coisas maravilhosas do ponto de vista acadêmico/intelectual, algumas atividades interessantíssimas, que construíam, desde as pequenas até as crianças maiores, um grau de autonomia enorme.
Avante – E em relação a sua mentora da Riverside School, Kiran Sethi. O que mais chamou a atenção em sua personalidade?
Maria Thereza – Nós estivemos com Kiran em três oportunidades. A primeira, nós chegamos em Ahmedabad num domingo e fomos para um parque muito bonito para encontrar com ela para uma atividade do Design for Change. Sempre aos domingos, as crianças e suas famílias vão contar histórias e fazer teatro para as pessoas que circulam pelo parque. Os meninos uniformizados com uma camiseta preta com a logo do Design for Change, atrás escrito be the change (seja a mudança), chamavam as pessoas que estavam no parque e faziam atividades artísticas. Esse foi o nosso primeiro contato com Kiran.
O segundo contato foi uma visita à escola, onde passamos o dia. A escola tem uma área enorme, tem árvores, tem parque e a casa dela é dentro da escola. Ela nos ofereceu um almoço. Seu marido, Geet Sethi, foi campeão olímpico de bilhar da Índia sete vezes. Tem um livro publicado sobre persistência, perseverança. Eles têm um casal de filhos; o rapaz trabalha na escola, a moça estuda dança. Uma família muito simpática, muito amorosa.
Nos encontramos também em uma reunião de professores. Por meio desses encontros, conhecemos uma pessoa hiper simpática; uma moça jovem, deve ter uns 50 anos, mas parece ter muito menos, muito tranquila, muito simples e muito aberta e com muito conhecimento.
Avante – Durante o EduRetreat vocês tiveram encontros com personalidades indianas importantes. Ela fez parte desses momentos?
Maria Thereza – Tivemos um encontro com Balkrishna Doshi, figura fantástica, um arquiteto que foi aluno de Le Corbusier; com a Secretária de Educação de Ahmedabad; e com Geet Sehti, o marido de Kiran, que tem um grande reconhecimento na comunidade por ter sido heptacampeão olímpico de bilhar, mas também por exercer um papel político importante na Índia. Os atletas indianos que iam para os jogos olímpicos não tinham o menor apoio, ficavam mal acomodados, era uma diferença muito grande em relação a atletas de outros países. Foi aí que ele virou um defensor dessa causa e conseguiu que o estado cuidasse melhor dos atletas, por isso ele é tão reconhecido também. Nós nos encontramos também com a secretária de Educação de Ahmedabad.
A conversa com os dois foi muito informal, à noite. Nosso grupo de 12 pessoas e eles. Nesse caso, os holofotes estavam sobre o marido de Kiran. Mas ela fez uma apresentação dele muito interessante. Ela disse, ao apresentar o marido, que antes de tudo ele é um homem que tem sido sempre seu parceiro, que sempre a ajudou, nunca cortou suas asas, sempre a incentivou voar. E isso em uma cultura ainda muito machista, pior que a nossa, embora existam grandes mulheres lá. Ela disse: “ele nunca me impediu de fazer nada, sempre me deu a maior força, sempre esteve perto de mim e é um pai maravilhoso para minha filha. Ele se comporta com a minha filha da mesma forma que se comportou comigo, é um gentil homem e pra mim esse é o grande currículo dele”.
Avante – O Design for Change está sendo copiado em todo o mundo. A que você atribui isso?
Maria Thereza – De fato, a gente percebe que o programa tem um efeito imenso no comportamento das crianças. Você sente que os (as) meninos (as) ficam mais atuantes, proativos, solidários, muito educados, muito afetuosos, mexe mesmo com as pessoas.
Avante – Qual o principal impacto que essa visita provocou em você?
Maria Thereza – Perceber que outra forma de educar é possível. Que é possível trabalhar integralmente a pessoa, não se preocupar só com o conhecimento. Que é possível formar pessoas, mesmo as que nunca tiveram situação difícil na vida. Você pode formar essas pessoas para que tenham um olhar mais amoroso, cuidadoso e comprometido com a realidade. E que é possível empoderá-las para saber que são capazes de transformar realidades, que as coisas que estão aí não estão dadas, o mundo pode ser outro.
Avante – E para a instituição (Avante)?
Maria Thereza – Ver isso acontecendo, e muito organicamente dentro de uma escola, foi um grande impacto porque a Avante, trabalha dentro dessa perspectiva de transformação, de promoção e garantia de direitos, de um compromisso com setores mais vulneráveis da população. Então, pra mim e pra Avante toda, é muito importante ver isso acontecer e ver que isso é possível. Nos fortalece.
O resultado imediato dessa minha ida (em 2013), juntamente com Ana Luiza Buratto, no EduRetreat, foi a organização do Trocando em Miúdos – Intercâmbio Internacional Índia (2014). Esse é um programa da Avante pelo qual a gente leva, desde 1999, um grupo de pessoas para conhecer experiências interessantes e instigantes em educação, ao redor do mundo. Em função dessa nossa primeira ida e do que a gente viu, principalmente na Riverside, e o contato com Kiran, nós organizamos essa nova ida à Índia (2014) para um grupo de 20 pessoas. E, mais uma vez, um dos pontos altos da visita foi a Riverside School. Essas 20 pessoas de diversas partes do Brasil viram essa experiência e também voltaram muito impactadas com o que viram.
Avante – Qual era a expectativa de vocês na época ao proporcionar essa experiência?
Maria Thereza – A ideia era mostrar às pessoa, primeiro, que é possível fazer alguma coisa diferente. A gente gostaria que elas tivessem a experiência maravilhosa que a gente teve; de conhecer Kiran, de ver os professores, de ver os meninos, de ver que você não precisa de mundos e fundos para conseguir realizar algo assim. Ao contrário, a escola é bonita, é um lugar muito agradável, mas não é uma escola riquíssima. É uma escola acolhedora e você vê a qualidade da conversa dos meninos, a qualidade do ambiente, como os professores se colocam. Há muita simplicidade. Então, a gente achou que isso seria muito interessante para um grupo de educares brasileiros conhecer.