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Crianças expressam seus medos por meio de Jogo de trilha

O lugar se chama Quilombo do Paraíso. E está entre as tantas comunidades populares de Salvador nascidas da resistência e sobreviventes da luta. Heranças que deixaram marcas, entre elas, a convivência com o medo. Realidade que pode ser observada na fala, na vida e no cotidiano das crianças do Quilombo, que deu origem a um Jogo de Trilha construído a partir da brincadeira, do diálogo e da escuta das crianças da comunidade, feita pela equipe do projeto Estação Subúrbio – nos trilhos dos direitos.

O assentamento, constituído por barracos muito rústicos, feitos de lona e madeira, mantém um aspecto rural, possuindo, inclusive, um curral. É envolto pela vegetação, tornando-o um local potente para as crianças brincarem livres. Livres?

Eu te digo o que liberdade significa pra mim: nenhum medo
(Nina Simone, cantora e compositora negra, americana).

“Eu gosto de morar aqui, tem um monte onde empino arraia e tem muito vento”, conta Renato, 12 anos, que pondera essa possível autonomia no espaço da comunidade ao relatar seus medos: “de policia, eles chegam atirando, não respeita os negros. Os moradores não fazem nada demais, os policiais começam cismando com as pessoas. Tem pouco tempo os policias vieram aqui. Por causa disso, muita gente foi embora. Não se sente seguro, nem em casa”, disse Renato à equipe do projeto.

“O medo foi um dos temas abordados no processo de reflexão sobre si mesmo, a família e a comunidade nos grupos de desenvolvimento do projeto”, conta Fernanda Pondé, psicóloga social do Estação Subúrbio. Ela relata que pediu às crianças e adolescentes atendidos para falar sobre do que tinham medo e quais recursos tinham ou poderiam buscar para lidar com eles. “Tivemos relatos de vários tipos medos. Desde medos fantasiosos como do Boneco Chucky, do carro preto, por exemplo, até medo de cobra, mordida de rato e chegamos ao medo de tiroteio, de estuprador e da polícia”, conta Fernanda Pondé.
Após o compartilhamento, a proposta foi a construção de um Jogo de Trilha onde os obstáculos que atrasariam os caminhos seriam os medos, e os que avançariam em direção à linha de chegada, os recursos para lidar com eles. O nome do jogo? Ocupação Paraíso. “Foi um processo de construção coletiva em três subgrupos. O material passou a ser utilizado como mais um brinquedo entre as crianças”, relata a psicóloga social.

Para Renato, os recursos a serem utilizados para lidar com seus medos seriam: Ajudar a comunidade; ajudar os moradores de rua; procurar trabalhar com a policia, para que aprendam a entrar respeitando a comunidade. E Renato não é a única criança ou adolescentes que receia a presença da polícia na comunidade. Ao invés de sentir-se segura, Andressa, 11 anos, corrobora com o amigo: “A policia invadiu aqui, estavam à procura de um homem, que foi embora. Todo mundo correu, invadiram a minha casa e da vizinha. Ficamos em pânico”. Ela descreve o alívio por nada de mais sério ter-lhes acontecido e a polícia ter ido embora com a seguinte fala: “A policia foi gente boa”.

Não é simples para essas crianças identificarem e falarem sobre seus medos. Geisa, 10 anos, por exemplo, mora há muito tempo no Quilombo do Paraíso e diz gostar do lugar, “pois, aqui, a gente brinca”. Mas seu sentimento muda quando pensa na relação conturbada com os amigos. “Não gosto daqui quando os meninos perturbam , ficam empurrando, batendo, dando murro”.  Ela também diz ter medo de ladrão, “de entrar aqui, ter tiroteio”. No entanto, Geisa também afirma que na Ocupação não tem tiroteio e que “não é muito violento”, que a policia vem pouco, mas…, “um dia invadiu e botou todo mundo para correr“.

Autoconhecimento

Segundo Fernanda Pondé, o grupo de desenvolvimento ao fomentar o autoconhecimento foi uma importante etapa parar para pensar do que elas têm medo. “Assim como outras temáticas, falar sobre o medo tem ajudado as crianças a falarem de si, e pararem para pensar em coisas que talvez ninguém nunca as tenha perguntado”, disse a psicóloga social do projeto. Ela relata que as falas sobre o medo surgiram num ambiente de tranquilidade e de confiança que o grupo já tem estabelecido.

Fernanda Pondé explica que o brincar tem sido a linguagem e o recurso escolhido pelo Estação Subúrbio para interagir com as crianças, entendo que é também no brincar que um processo terapêutico pode se estabelecer no sentido de criar oportunidade de fala e de escuta, de expressão de coisas que muitas vezes fica guardada e que elas acham que só elas sentem. “No momento que falam e transformam num jogo esses relatos, elas têm a chance de ressignificar aqueles sentimentos, se reconhecer nos medos dos outros, encontrar recursos em conjunto, para lidar com medos em comum”, reflete.

O Estação Subúrbio é fruto de uma parceria entre Avante – Educação e Mobilização Social e a organização alemã Kindernothilfe (KNH). A iniciativa tem como uma de suas estratégias a convivência com a arte, a cultura e o lazer para a redução da violência comunitária, especialmente no que se refere às crianças e adolescentes. O projeto atua no Subúrbio Ferroviário de Salvador até 2021, com ações nos bairros de Plataforma e Periperi.

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