A Avante está, neste momento, em San Juan – Puerto Rico, juntamente com mais de 80 nações e mais de 800 profissionais ligados à infância para participar da décima edição do Fórum Mundial sobre Cuidados e Educação na Primeira Infância (World Forum – WF), que acontece de hoje (terça – 06 de maio) ao dia 09 (sexta-feira). A porta de entrada para este grande evento mundial são os direitos das crianças.
A instituição é representada por Maria Thereza Marcilio, Gestora Institucional que foi Global Leader (GL) em 2009 e é a atual coordenadora do grupo de GL das Américas; e Ana Oliva, consultora Avante especializada em infância e selecionada como GL nesta edição. As duas representarão a instituição em três das quatro mesas promovidas pelo Grupo de Trabalho (GT) sobre os Direitos da Criança (ChildrensRight) onde participarão de debates e trocas de informação sobre temas relacionados a este público.
Maria Thereza participará da mesa que abordará os resultados da Convenção Internacional dos Direitos da Criança – impacto e desafios nos países integrantes da mesa. Ela também foi convidada para co-coordenar a mesa que abordará os direitos deste público numa perspectiva de multiculturalidade. A Gestora Institucional da Avante participaria ainda da mesa “Buscando a voz das crianças e encontrando formas de escutá-las” (Seeking Out Children’s Voices and Finding Ways to Listen), que apresentará e discutirá vídeo clips produzidos ao redor do mundo sobre o tema. Maria Thereza apresentaria o trabalho desenvolvido por Ana Oliva na instituição. No entanto, com a seleção de Ana como GL – o que garante sua presença no WF -, e seu contato pré-estabelecido com o GT de Direitos da Infância ao substituir Maria Thereza em uma reunião do mesmo na Noruega, ela foi indicada por Thereza para representar a instituição na mesa e falar ela mesma sobre o trabalho de participação infantil que desenvolve na Avante.
Ana hoje está nas ruas e nas estradas conectada com a história e a ponta da participação infantil no Brasil e no mundo. Ela coordena três projetos: Foco na Infância, Infâncias em Rede e Primeira Infância Cidadã (PIC), todos sob a perspectiva de escuta e fomento à participação das crianças. Ela tem representado a instituição em eventos nacionais e internacionais com esta temática e no Fórum Mundial apresentará o registro, ainda bruto, de uma conversa com crianças feita durante sua viagem a Lábrea – sul do estado do Amazonas, no final de 2013. A viagem, registrada na matéria Avante chega à primeira infância amazonense, surgiu a partir da articulação com o Instituto Chico Mendes de Preservação da Biodiversidade para conhecer de perto a realidade da primeira infância nesta parte norte do país.
Em entrevista, Ana fala sobre sua trajetória com o trabalho com as crianças e o envolvimento com o fomento à participação infantil. Ela também aborda sua visão sobre o cenário brasileiro de participação das crianças nas decisões e garantia dos seus direitos e faz relação com sua participação no Fórum Mundial. Confira.
Avante – Ana, conte-nos um pouco como e quando começou o seu envolvimento com as crianças pequenas.
Ana Oliva – Eu fui professora da Educação Infantil em uma escola particular e na época recebi formação da Avante. Além disto, sou psicóloga e, tanto na psicologia quanto na educação, parte do meu trabalho foi em desenvolvimento infantil. A minha entrada na Avante, em 2001, foi como educadora, não como associada. A princípio meu trabalho foi com o público juvenil, já na perspectiva da participação política. Só mais tarde, como associada, fui trabalhar com a infância numa perspectiva desta como sujeito de direitos, com o poder de decisão sobre o que lhe afeta na vida.
Avante – Sua entrada na Avante mudou alguma coisa sua visão sobre participação infantil?
Ana Oliva – Eu considero, na verdade, um encontro. Ficou fácil para mim trabalhar com participação infantil na instituição vindo de onde eu vim porque as intervenções pedagógica da Avante têm a ver com a construção de autonomia, tem a ver com a criança participando das decisões que afetam o cotidiano escolar, o empoderamento delas na família e da família no cuidado delas. E esta lógica já fazia parte da minha vida, então foi um encontro de experiências.
Agora, o envolvimento com os projetos de participação infantil na instituição me possibilitou o contato com outras esferas de atuação que ampliaram a minha visão sobre o tema. O envolvimento com a RNPI (Rede Nacional Primeira Infância), por exemplo, a participação na Consulta Internacional de Expertos em Violência na Primeira Infância, no Peru e a ida ao GT de Direitos das Crianças na Noruega, para substituir Maria Thereza, são alguns que eu destaco como transformadores das minhas ideias sobre participação infantil.
Avante – Por que, Ana? O que houve de especial nestes momentos?
Ana Oliva – Foi a partir deles que eu pude perceber e experienciar um salto no que eu considero fundamental para trabalhar com o tema – a quebra das barreiras que nos impedem de ver as crianças como sujeitos políticos. No Peru eu participei de discussões com especialistas em participação infantil; houve um momento de encontro de lideranças latino americanas onde tive o prazer de estar e ver como o pessoal com 14, 15 e 16 anos está afiado, bonito, numa afinação poética, apaixonante como um adolescente pode ser, mas muito real, com consciência, com um olhar muito crítico. Tive contato também com crianças que integram a Câmara das Crianças – instância representativa delas no parlamento. Então eu vi o resultado da formação política iniciada logo cedo, nas escolas. A convivência, tanto com estas crianças, como com a equipe de colabores do INFANT – Instituto de Formación para Adolescentes y NiñosTrabajadores, foi muito rica.
Depois eu fui para o interior da Amazônia Peruana e vivenciei uma experiência de fomento à participação infantil com crianças de comunidades locais, onde o Movimento de Crianças Trabalhadoras é forte. E aí o mais transformador foi saber que a maior referência para isto tudo é o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua brasileiro. Ou seja, a referência deles somos nós mesmos. Um nós que não conhecemos.
Já no GT de Direitos das Crianças na Noruega eu vi que a formação do sujeito tem que começar cedo, de 0 a 6. E na RNPI mantive e mantenho contato com as articulações e ações de fomento a este direito. Quando comecei as articulações dentro da Rede ela já havia aprovado o PNPI (Plano Nacional pela Primeira Infância) e começava o trabalho para tornar o Plano real, ou seja, trazer a participação infantil como fundamental no processo de garantia dos seus direitos na esfera municipal. Foi em cima desta experiência na RNPI que foram pensados e são executados os projetos que coordeno hoje na Avante.
Avante – Você mencionou que o Movimento de Meninos e Meninas de Rua (MMNR) é uma referência para os movimentos de participação infantil fora do país e sua atuação/importância é pouco conhecida aqui no Brasil. O que você conhece sobre no Movimento?
Ana Oliva – O MMNR é realmente um grande mobilizador internacional de participação infantil. Como disse, eu percebi nas minhas andanças que ele é uma referência para muita coisa que está sendo feita dentro e fora do Brasil e ele quase some, se acaba. Ele foi, por exemplo, o grande fomentador do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e do artigo 227 da Constituição (“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”). E hoje o Movimento está tentando se reestruturar. Houve um encontro ano passado aqui em Salvador e eu fui lá.
Avante – A gente pode afirmar que há participação infantil no Brasil?
Ana Oliva – A participação política seja ela infantil, juvenil ou adulta ressurge no Brasil depois de um grande tempo de enfraquecimento, pois as instâncias de participação política que tínhamos na escola, por exemplo, foram sendo dilapidadas. Nós tínhamos garantido no currículo matérias como OSPB (Organização Social e Política do Brasil) e uma formação moral e cívica que com o tempo foram assumindo um formato questionável. Tínhamos também a participação nos grêmios e estas coisas acabaram. De alguma forma este movimento foi freado bruscamente. Hoje a gente sente dificuldade de participar adultamente nas decisões políticas do país, imagine “infantilmente”. A incoerência é que, globalmente, nos compromissos internacionais e nacionais, há o fomento à participação infantil.
Para garantir e consolidar esta participação aqui ou em qualquer lugar é preciso aceitar e acolher o fato de que formação do sujeito político tem que começar cedo, por meio da garantia de participação das crianças pequenas, seja na escola, na comunidade, na família, seja em qualquer lugar. E hoje vivemos um fenômeno moderno e contemporâneo no mundo de alijamento social das crianças nos espaços públicos. Quando existe é uma ocupação cada vez mais tutelada, ou então elas estão confinadas em escolas e em casa. E isto esvazia a criança como sujeito político, pois ela deixa de participar da interação do cotidiano com o adulto na tomada de decisões que, inclusive, impactam na vida delas.
Não é à toa que onde a gente encontra uma participação infantil de forma muito integrada é na comunidade. Os lugares que possuem um movimento comunitário forte são aqueles onde ainda existe a vida comunitária e aí você pode sentir a participação das crianças. Estas esferas comunitárias nunca deixaram de se movimentar e trazer a voz das crianças para as instâncias de participação. O MST, por exemplo, é uma referência forte em participação infantil nacional com o Movimento dos Sem Terrinha.
É verdade que nas comunidades urbanas é mais difícil de existir esta convivência por conta do cenário de violência e segregação, mas existe. O próprio Movimento Negro e mais recentemente o Movimento dos Sem Teto, todos trazem a participação das crianças.
Avante – Como você vê este cenário brasileiro em relação aos outros países das Américas?
Ana Oliva – Apesar disto tudo, o movimento de participação infantil no Brasil ocupa um espaço de qualidade. A gente pode até não ter contato fácil com as ações existentes, mas, assim como na América Latina, o trabalho com participação infantil envolve um pessoal de qualidade. Assim como no Peru, o Brasil também possui uma espécie de Câmara das Crianças – uma infantil e uma infanto-juvenil -, mas a gente nem ouve falar. Agora mesmo está indo um baiano representar o Brasil no Mercosul por este parlamento.
Há movimentos e organizações locais que desenvolvem trabalhos de participação e mobilização comunitária, educação e direitos humanos, como a Fundação Xuxa que fomenta uma rede de participação infantil – a Mais Crianças; ou o CECIP; a Terra dos Homens; a própria Avante e muitas outras que integram conosco a Rede Nacional pela Primeira Infância. Hoje temos tanto gente de fora do país, como instituições locais investindo, movimentando o cenário de participação no país,
Avante – O que a levou a se inscrever no Global Leader?
Ana Oliva – Eu acredito nos espaços de intercâmbio e troca como espaços transformadores, onde eu encontro gente que trabalha neste mesmo lugar que eu, no mundo inteiro. Agora mesmo eu recebi o meu mentor no projeto Global Leader. É um cara do Zimbábue. A gente tem um grupo de seis brasileiros de diferentes partes do país, tem uma índia norte americana, vou me encontrar com gente da Índia. Então, eu me inscrevi pra continuar o percurso que eu comecei há mais tempo e que eu realmente acredito como um caminho possível e necessário.
Avante – Entre as propostas do Global Leader está o incentivo à captação de recursos para o desenvolvimento de um projeto que impacte na realidade da Primeira Infância. Você já tem alguma área de atuação em vista?
Ana Oliva – A ideia é uma construção coletiva deste projeto pelo grupo do Brasil. Com certeza tenho mil coisas em vista porque estou trabalhando com o tema da primeira infância na Avante e temos vários focos, a participação infantil é um deles. E é um que já se conecta com o GT de Direitos das Crianças, que já participo, com a própria proposta do World Fórum, então as coisas estão integradas. Mas eu acredito no encontro. Quero chegar neste evento e a partir dele ter uma noção mais clara do projeto que deve ser pauta dentro da realidade, do cotidiano, da vida, da construção coletiva, dos tempos e tudo o mais.