Boca de forno… forno. Faremos tudo o que seu mestre mandar? Faremos todos… E se não fizer? Grita a mestre, Vitória, 13 anos, líder da brincadeira que levou as crianças da Ocupação Quilombo do Paraíso a se divertir e, ao mesmo tempo, exercitar sua cidadania, limpando a comunidade. Para Vitória, integrante do grupo de crianças e adolescentes atendidos pelo projeto Estação Subúrbio – nos trilhos dos direitos (Avante eKNH) na Ocupação, assentamento do Movimento sem Teto da Bahia, localizada no Subúrbio Ferroviário de Salvador, o jogo foi uma descoberta, “a gente começou a brincar e, até sem perceber, estávamos fazendo uma limpeza na comunidade”, disse.
O projeto tem a garantia do direito ao brincar como a principal estratégia no combate à violência na comunidade, em especial em relação às crianças e adolescentes, e entre eles. “O tempo e o espaço de brincadeira são um exercício lúdico duma experiência, por um lado de alegria e comunhão e por outro, de acesso a direitos e deveres. Para crianças, expostas a uma realidade dura, onde violência urbana e negação de acesso a direitos básicos fazem parte do cotidiano, o tempo participando do Estação Subúrbio é um momento de vivenciarem plenamente a sua infância”, disse Ana Oliva, consultora associada da Avante e coordenadora do Projeto.
Boca de Forno
A brincadeira consiste em uma criança (o/a mestre) evocar uma ação que deve ser obedecida pelos participantes, aqueles que conseguirem realizar o comando com mais agilidade ganha. A brincadeira foi promovida em um dos encontros semanais com crianças da Ocupação Quilombo do Paraíso, mediado pelos educadores brincantes do Projeto. O comando de Vitória naquela tarde na comunidade foi o de recolher o lixo que estava jogado pelo chão. E assim, brincando e limpando a comunidade, as crianças foram aprendendo a cuidar e exercitar sua cidadania.
Satisfeita com o resultado, Vitória diz que, além de divertida, a brincadeira ajudou, também, a criar consciência em relação aos cuidados com a saúde: “ajuda a gente, e outras crianças que brincam naquele ambiente, a ficar livre do mosquito da dengue. E com as garrafas pet e copos que coletamos podemos até criar brinquedos”, disse a garota, que traz o exemplo de casa. “O lugar de jogar lixo é no lixo, mas as pessoas acham que aqui é lixo. Tem que pegar um saco, juntar tudo. Meu pai faz isso, ele anda com um saco para jogar o lixo no lixo”, finaliza.
Isabele, 10 anos, também integrante do grupo, gostou do mutirão, mas lamenta a persistência do problema. “A brincadeira foi muito boa, mas já está tudo sujo de novo. O povo não tem consciência. Na praia, por exemplo, toma cerveja, e joga a latinha no chão. Tá poluindo pra a gente mesmo. Quando chove a água leva o lixo todo pro mar”, disse. Isabele percebe os danos que o acúmulo de lixo pode causar para os próprios moradores da comunidade e a importância de cuidar do assunto para evitar alagamentos durante as chuvas. “A pessoa mastiga um chiclete e joga a embalagem dentro do esgoto, que foi feito pra quando chover descer a água, e aí fica cheio de lixo. Meu primo foi limpar e achou lá um bocado de saco”, observa e diz acreditar na união de todos para promover a mudança, demonstrando um ganho de consciência em relação ao problema à medida que brinca, reflete e aprende.
“O momento da brincadeira é um espaço de fala e ressignificação para essas crianças e adolescentes. A mudança já é visível. Eles eram muito agressivos entre si, era o padrão de normalidade das relações, agora eles entendem o brincar, se chamam e se ajudam”, disse Camila Souza, psicóloga e uma das educadoras brincantes do projeto Estação Subúrbio.
O projeto
O projeto é financiado pela organização alemã Kindernothilfe (KNH) e atua na comunidade desde 2017, permanecendo até 2020, levando o brincar também para os adultos: “entendemos que a violência está presente na relação familiar, então buscamos no brincar melhorar a qualidade da relação entre pais e filhos”, diz Camila Souza.
Os brincantes passam todo o dia com as crianças uma vez por semana, ás quartas feiras, e promovem passeios em alguns fins de semana, levando-as para conhecer outros lugares da cidade. As atividades beneficiam crianças com idades entre 4 e 16 anos, no contra turno escolar.