Em um grupo de mulheres, em Colinas de Periperi, uma pergunta que não queria calar: “quem conhece alguém ou já foi vítima de violência?” Sem espanto, muitas disseram que sim, seja por terem sido violentadas, seja por conhecerem alguém nessa situação. O tema integrou o bate-papo com Patrícia Sanches, uma das assistentes sociais responsáveis pelas ações do Balcão Psicossocial do Projeto Estação Subúrbio – nos trilhos dos direitos, realizado pela Avante – Educação e Mobilização Social, em parceria com a organização alemã Kindernothilfe (KNH), na Ocupação Quilombo do Paraíso, como parte do Encontro do Coletivo Guerreiras Sem Teto, promovido em agosto, em parceria com o Movimento dos Sem Tetos da Bahia.
A violência doméstica e familiar está intimamente ligada aos feminicídios (Lei nº 13104/2015), crimes praticados contra o gênero feminino decorrentes do fato da vítima ser mulher, colocando o Brasil na quinta posição, num grupo de 83 países com dados homogêneos, fornecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Com uma taxa de 4,8 homicídios por 100 mil mulheres, o Brasil só fica atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e a Federação Russa.
(Veja o Mapa da Violência 2015. Homicídio de mulheres no Brasil)
Com uma longa trajetória em defesa da mulher, a assistente social do Estação Subúrbio é formada pela Universidade Católica de Salvador (UCSAL), e pós-graduada em Política Públicas de Gênero e Raça (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM/UFBA) e atuou como técnica do Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) de Santo Antônio de Jesus (2010), de onde saiu para implantar e coordenar o CREAS Itaparica. Aqui, ela nos conta como foi o diálogo na Ocupação, e qual o contexto da violência doméstica e familiar contra a mulher na Bahia.
*Qual a situação da Bahia, em número de feminicídios?
Patrícia Sanches: A Bahia é o segundo estado que mais mata mulheres por conta de feminicídio, quando essa mulher morre pela condição de ser mulher. São 9,04 mulheres a cada 100 mil habitantes, por conta da violência doméstica familiar. Perde somente para o Espírito Santo, que é o primeiro colocado.
* De onde surgiu o convite para participar do Encontro do Coletivo Guerreiras Sem Teto?
Patrícia Sanches: Rita, que é uma das lideranças da Ocupação Quilombo do Paraíso, me pediu para participar. Ela sabe que eu tenho uma estrada de diálogos sobre a violência familiar e doméstica contra a mulher, então, a gente entrou como uma ação estratégica do Estação Subúrbio, por ser uma demanda da comunidade. Foram elas que pediram.
*Como foi a atividade?
Patrícia Sanches: Por dois dias reunimos as mulheres, não só da Ocupação do Quilombo do Paraíso, mas das outras ocupações da região, do Pelourinho, do Movimento Sem Teto, para uma exibição de filmes referentes ao tema, um diálogo sobre assédio sexual e moral, com Zilmar Averita, doutora em ciências sociais que pesquisa as relações de trabalho, e um bate-papo comigo sobre a questão da violência doméstica familiar contra a mulher.
Eu expliquei quem é Maria da Penha e o que é a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06), os tipos de violência, o acesso à Rede de Atenção Psicossocial, acolhendo as experiências delas. Quando a gente fala disso, lembra que a violência doméstica familiar perpassa todas as classes econômicas, além da questão racial. Brancas e negras são vítimas, pobres e ricas, mas existe uma sinalização de que as mulheres negras são as maiores vítimas de violência, além do fato das mulheres com poder aquisitivo maior terem mais acesso aos serviços de apoio como psicólogo e psiquiatra. Muitas não denunciam por conta da questão socioeconômica. Então, existem vários pormenores.
Se você acessar o Mapa da Violência 2015, vai ver que há aumento significativo da violência doméstica entre as mulheres negras e uma redução entre as brancas.
*A Maria da Penha ficou popularizada como uma lei que trata da violência conjugal. É isso mesmo?
Patrícia Sanches: A Lei contempla a violência contra a mulher. Os índices maiores são nas relações conjugais, pelo companheiro, ex-companheiro, namorado, ex-namorado, marido, ex-marido. Como se chama doméstica familiar, a gente acompanha outros índices de relação familiar, mas são menores. Mas a Lei contempla também outras situações, de pessoas que vivem na mesma casa e agridem a mulher.
Se a irmã ou o irmão a agride, também é violência doméstica familiar. Se o filho agride a mãe idosa, toma o cartão de crédito, por exemplo, ou mantém em cárcere privado, pela condição de ser mulher, é considerada violência doméstica familiar. E também as relações homoafetivas. Hoje, alguns juízes e juízas já estão tratando também a questão dos transexuais e transgêneros pela Lei Maria da Penha.
*Por que há maior índice nas relações conjugais?
Patrícia Sanches: Existe uma relação de dominação do homem sobre a mulher, na perspectiva do nosso país patriarcal e machista. Ao homem foi cedido, por muito tempo, o espaço público de visibilidade, de acesso, até nas brincadeiras: os carros, a liberdade, poder correr, empinar pipa, cair no rio. E à mulher, o espaço privado, refletido na exigência do jeito de sentar, a escolha dos brinquedos, a casinha, a bonequinha, o fogãozinho, direcionando para um lugar específico, o lugar do privado, do cuidado. Por isso, as pessoas naturalizam a violência no ambiente familiar como algo da vida privada, tanto que tem o jargão ‘em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher’.
Na relação conjugal ainda existe, por parte de muitos homens, o costume de obrigar as mulheres a terem relação sexual. Na palestra, eu comentei sobre o trocadilho ‘se prepare, que eu vou lhe usar’, usado pelo personagem de José Wilker, na novela Gabriela, e como as pessoas riam disso. Como é grave rir disso, porque a gente está sancionando essa obrigatoriedade como verdade. É uma construção da nossa sociedade, como tantas outras, e a questão racial é uma delas.
Quando o homem impede a mulher de usar anticoncepcional, também é violência sexual. E tem a violência patrimonial, quando ele rasga a roupa dela, quando segura os documentos para que ela não saia, quando ele queima as coisas dela, pega chave do carro, do apartamento.
*E na Ocupação, como elas compreendem essa violência?
Patrícia Sanches: A sociedade só reconhece, entende e repudia a violência física, que é aquela que marca e a gente vê. Mas quando a gente atende uma mulher dessas, as violências se sobrepõem. Ela já foi vitima da violência psicológica, moral, patrimonial, muitas vezes também sexual, porque a nossa cultura não entende que se a mulher não quiser ter relação sexual com o marido, ela tem o direito de não querer, por exemplo.
Quando levamos isso para a base, para as comunidades, a gente percebe que elas não entendem que existem outros tipos de violência além da física. Elas naturalizam. Não entendem que o homem chamar a mulher de gorda, retardada, idiota, é violência psicológica. E muitas vezes, as que mais compreendem, sinalizam que essas outras violências, como a psicológica, marcam muito mais do que uma violência física, porque isso fica o tempo todo no ouvido dessa mulher. Quando a Lei Maria da Penha chega, e tipifica essas violências, expõe essas situações e nos ajuda a entender.
*Por que é tão difícil uma mulher romper esse ciclo?
Patrícia Sanches: São vários fatores que mantêm essa mulher refém do ciclo de violência: vergonha, medo, afeto, falta de estrutura. Ou ela ama mesmo esse homem, ou não tem condições financeiras para romper esse ciclo. Ou tem condição financeira para romper, mas fica com medo do preconceito da sociedade, da própria família. Ou porque quer manter a relação familiar, por conta dos filhos. São vários entraves.
Quando eu perguntei se alguém era vítima ou se alguém conhecia alguém que é vítima, muitas disseram que estão sendo vítimas de violência, relataram os fatos. E algumas disseram como conseguiram romper o ciclo. Muitas vezes, essa mulher não tem a base primária, não tem o apoio da família, nem tem uma rede de serviços. Muitas demoram para contar à família que precisam romper esse ciclo. Tem gente que leva 20 anos, 10 anos, um ano. E tem gente que morre, vítima do feminicídio, porque não conseguiu romper.
Aí a gente vê que é algo que está muito mais próximo da gente do que se imagina.
*Qual o caminho para o reconhecimento da existência da violência?
Patrícia Sanches: O Estado só entende que essa mulher é vítima de violência se ela fizer o registro na delegacia. Em Salvador, são duas delegacias especializadas em atendimento à mulher (DEAM), que é a de Brotas e a de Periperi. Os bairros são divididos e cada território vai buscar apoio dessa delegacia especializada. Se essa mulher faz o registro, o Estado vai entender que ela está sendo vítima de violência.
Nos casos mais graves, em que a delegada vai solicitar apoio da juíza, são emitidas as medidas protetivas de urgência. Têm as medidas mais comuns: afastamento do agressor do lar; não manter contato com a família nem com a agredida por redes sociais ou telefone; manter quinhentos metros de distância. Mas há outras, inclusive há juízas que entendem que, naquele momento, se esse agressor tiver filho com aquela mulher, ele não tem condição de ter acesso a esse filho naquele momento, porque o filho também corre risco.
*E onde não existem delegacias especializadas?
Patrícia Sanches: Elas acionam as delegacias comuns. Podem pedir também o suporte técnico de outros Equipamentos. O que me preocupa é que a Secretaria de Políticas para Mulheres do Estado da Bahia não tem braço para dar conta dos 417 municípios. Então, muitos equipamentos que estão nesses municípios são os centros de referência especializados de assistência social (CREAS), equipamentos da Política Nacional da Assistência Social, e se essa mão de obra não for especializada para atender esse tipo de violência, vai existir uma lacuna nesse lugar. Em Itaparica, que é aqui do lado, por exemplo, há apenas o CREAS e a Delegacia comum. Eu coordenei o CREAS de Itaparica e lá se trabalha com pessoas vítimas de violação de direitos, entre elas, mulheres vítimas de violência.
Na delegacia comum, é habitual a mulher sofrer preconceitos dos agentes, que não querem fazer o registro da denúncia, que dizem coisa do tipo: ‘foi com essa roupa que você estava?’, ‘Joãozinho é meu amigo, não vou fazer o registro’.
*Existe uma sinalização da Lei Maria da Penha para se trabalhar na ressocialização do agressor. Como andam essas ações no Estado da Bahia?
Patrícia Sanches: A Lei não tem a perspectiva só de punição, porque ela traz a sinalização de que esse agressor pode passar pela ressocialização. Eu trabalho com a Lei desde que foi efetivada [7 de agosto de 2006], quando tinha a proposta de trabalho da juíza Márcia Lisboa, ainda hoje titular da 1ª Vara de Violência, nos Barris, junto com uma equipe multiprofissional de assistentes sociais, psicólogas, integrando um grupo de ressocialização. Elas perceberam que alguns homens, mesmo que as mulheres rompessem o ciclo, quando se envolviam com outras mulheres, continuavam reproduzindo esse ciclo. Então, ela indicava que esses agressores participassem da ressocialização.
Hoje, eu não tenho nenhuma informação de outro trabalho em relação a isso dentro da Rede de Atenção Psicossocial, além da Ronda Maria da Penha, onde um sargento e um cabo fazem o projeto Ronda para Homens, dialogando com homens, agressores ou não, sobre as questões de gênero e violência contra a mulher, convidando para participar do movimento de enfrentamento a esse tipo de violência. Esse projeto ganhou o prêmio de boas práticas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e do Instituto Avon, e é único que eu conheço em relação à Bahia.
Outra coisa muito legal, que a Lei traz, é começar a trabalhar essa perspectiva de gênero desde as/os alunas/alunos pequenininhos, até a universidade, para tentar mudar esse conceito de cultura. Porque não adianta só trabalhar com as mulheres, a gente tem de trabalhar com a sociedade em geral, para que as pessoas tenham entendimento dessa questão do fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher. Não é fácil, mas esse é o caminho.