Não é incomum ouvir dizer que a escola pós pandemia não poderá e não deverá ser a mesma. Assim como o mundo também não o será. Mas onde pousam os olhos quando se vislumbra essa mudança? Tanto os olhos das famílias, quanto os olhos do governo, dos gestores das instituições e das próprias crianças e adolescentes. Seria uma mera decisão entre presencial, virtual ou híbrido? Ou finalmente começaremos a dar atenção ao enfrentamento de uma cultura do fracasso escolar, agora exposta pela crescente potencialização das desigualdades socioeconômicas e culturais desde março de 2020 com o início do isolamento social provocado pela crise sanitária do Covid -19? É bom lembrar que o Brasil já é o país, no mundo, com suas escolas fechadas por mais tempo.
A Avante Super indica a leitura da publicação: Enfrentamento da cultura do fracasso escolar. Reprovação, abandono e distorção idade-série, do UNICEF e Instituto Claro. Ao longo das 65 páginas com dados, ricas análises, mas também sugestão de enfrentamento, o leitor encontra um cenário bem desenhado de “como a cultura do fracasso escolar impacta meninas e meninos no Brasil, levando à reprovação, abandono escolar e distorção idade-série, e o que pode ser feito para reverter esse quadro durante e depois da pandemia da Covid-19”, como descrito no próprio documento.
Para não dar a impressão de que esse é um problema novo, mas na verdade um problema que a sociedade brasileira parece não querer ver, a pesquisa aponta dados de 2019 e prossegue com o desenho dessa realidade em um Brasil pandêmico, com maior preocupação e participação das famílias na educação dos filhos. Em 2019, um ano letivo comum, os efeitos da cultura do fracasso escolar atingiram mais de 2 milhões de crianças e adolescentes, que foram reprovadas(os) nas escolas públicas municipais e estaduais, enquanto 623.187 abandonaram a escola. Mais de 6 milhões de estudantes estão em atraso escolar de dois ou mais anos (distorção idade-série).
Os dados apresentados no documento informam sobre as desigualdades internas a cada rede de ensino e entre elas. Uma situação que se agrava nas regiões Norte e Nordeste e ainda mais nos territórios do Semiárido e da Amazônia Legal, bem como nas escolas localizadas em áreas rurais. “Sua incidência recai com mais força entre as crianças e os adolescentes indígenas e negras e estudantes com deficiências”, especifica o documento.
Em um 2020 pandêmico, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) o percentual de estudantes de 6 a 17 anos que não frequentavam a escola (ensino presencial e/ou remoto) foi de 3,8% – superior à média nacional de 2019, que foi de 2%. Além desses, somam-se mais de quatro milhões de estudantes que afirmaram frequentar a escola, mas não tiveram acesso a atividades escolares e não estavam de férias (11,2%). Assim, estima-se que mais de 5,5 milhões de crianças e adolescentes tiveram seu direito à educação negado em 2020. O perfil dos mais atingidos continuou o mesmo no Brasil do Covid – 19, agravando as desigualdades no País.
Enfrentamento
Para além dos dados e análises de contexto que levam à existência do problema e sua invisibilidade na sociedade brasileira, o documento do UNICEF traça um cenário que tende ao agravamento dos desafios para educação pública nos próximos anos, e destaca que “nesse contexto, o enfrentamento da cultura do fracasso escolar passa pelo reconhecimento de que a distorção idade-série, a reprovação e o abandono se constituem em obstáculos à garantia do direito à educação para todas as crianças e todos os adolescentes brasileiros”. Ações articuladas entre governo e sociedade são apontadas como fundamentais para o desenvolvimento de estratégias concretas de enfrentamento.
Ou seja, estamos no centro da encruzilhada entre nos mantermos alheios a problemas que podem parecer distantes, mas na real estão dentro de nossas casas, ou olhar “o bicho nos olhos” e procurar compreender suas reais necessidades. Nesse último caso, a escola não permanecerá a mesma. “É preciso assumir que a qualidade na educação não é um conjunto de conteúdos ensinados e eventualmente repetidos ou utilizados pelas crianças e pelos adolescentes, mas também a formação de seres humanos capazes de reconhecer a igualdade no outro; que possam cuidar de si, do outro e do ambiente; que se comprometam com o enfrentamento a todas as formas de discriminação; que possam contribuir com o desenvolvimento social, economicamente sustentável de suas famílias e comunidades; que se sintam capazes de contribuir com os avanços da ciência, entendendo os compromissos éticos que a mesma ciência precisa assumir com a vida e com as sociedades, etc.”, como descrito na publicação.
E é preciso começar já. E um dos temas imprescindíveis é a reabertura das escolas: deve acontecer? Por que? Em que condições? Qual o papel de cada integrante desse quebra cabeça (governos, gestores, professores, comunidade, em especial as famílias)? E as crianças e adolescentes? Como saber o que pensam e sentem? O que priorizar para um retorno, além de seguro, com qualidade?
Essas são questões que abordamos em uma série de entrevista realizadas com Maria Thereza Marcilio, mestre em educação pela Harvard, presidente da Avante – Educação e Mobilização Social, educadora experiente, que já atuou com e junto a diversas redes municipais de educação brasileiras e mantém um diálogo constante no âmbito nacional e internacional sobre educação, primeira infância e garantia de direitos.
Leia aqui a primeira entrevista: Volta às aulas? Com a escola como equipamento essencial da comunidade.