Uma palavra costuma emergir de forma recorrente na fala de Maria Thereza Marcílio, presidente da Avante – Educação e Mobilização Social, quando o assunto é a postura do governo federal em relação à pauta Educação em tempos de pandemia: “retrocesso”. A omissão do MEC, a atitude negacionista em relação à doença e a ausência de um diálogo aberto com representantes do setor contribuíram para uma discussão reducionista neste momento pandêmico de volta ou não às aulas presenciais. Para se posicionar adequadamente sobre os reais desafios na Educação, no pós-pandemia, 28 instituições de referência deste segmento e da Saúde – entre elas a Avante – concentraram esforços para redigir conjuntamente o Manifesto: Ocupar escolas, proteger pessoas, recriar a educação. Organizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o documento traz uma visão crítica sobre o tema.
“O Manifesto é um convite para que outras organizações, associações e movimentos venham para contribuir e fortalecer”, disse Maria Thereza, que tem sido a interlocutora da Avante na redação do documento. “É necessário questionar desde logo o termo retorno. Não é possível retornar na vida, é preciso seguir e refazer, reinventar, recriar. As vivências desse período podem ensejar aprendizagens, a vida na pandemia se faz de acontecimentos que devem ser trazidos para as construções curriculares que acontecem no chão da escola, mesmo que agora em espaços virtuais. Não se trata de cumprir currículos ou repor ‘saberes escolares’, mas de fazer do processo vivido durante a pandemia uma oportunidade de troca de saberes e experiências, momentos de fortalecimento de laços pessoais e sociais. Momentos de resistência criativa e solidariedade com as comunidades escolares”, destaca o documento.
O Manifesto cita dados do Censo da Educação Básica 2019 (INEP/2019), que apontam para a existência de 50 milhões de estudantes matriculados nesse segmento no Brasil, sendo que quase metade (48%) estuda nas redes municipais, um terço (32%) nas redes estaduais e o setor privado recebe 20% dos estudantes. Entretanto, dos 180 mil estabelecimentos de ensino de Educação Básica – 60% nas redes municipais – menos da metade conta com salas de leitura ou biblioteca, apenas 20% dispõe de internet para estudantes, e um terço oferece computador – sendo esta questão, a da desigualdade social – uma das discussões prementes de análise, principalmente durante a pandemia, em função das sérias dificuldades que enfrentam os alunos de baixa renda.
“Considerando as dificuldades de acesso à internet, as imensas desigualdades brasileiras se aprofundaram ainda mais: parcela significativa de estudantes, em todos os níveis de ensino, não dispõe de equipamentos, conectividade e condições econômicas capazes de viabilizar minimamente o ensino remoto. Nesse contexto, os muitos esforços de preservar os vínculos educacionais apresentam resultados tímidos diante da possibilidade de evasão em massa e consequente aumento das desigualdades. Essas questões são temas centrais no debate educacional, ao lado da preocupação com a vida e com as condições emocionais da comunidade escolar. Nunca o direito à educação esteve tão vulnerabilizado”, aponta o Manifesto.
Além de considerar as diferenças regionais do país e a necessidade de territorializar o debate, Ocupar escolas, proteger pessoas, recriar a educação destaca que apenas as comunidades escolares podem “deliberar sobre a reabertura de suas escolas”, em respeito ao princípio constitucional da gestão democrática da escola pública e lista, ao menos, 14 pontos – chave que precisam ser considerados neste momento.
Pontos-chave do Manifesto:
- Fazer da pandemia uma oportunidade de troca de saberes e experiências, momentos de fortalecimento de laços pessoais e sociais, de resistência criativa e de solidariedade com as comunidades escolares.
- Reabrir e ocupar os espaços institucionais da educação para questionar se, como sociedade, vale a pena rever o que tem sido a escola e, com isso, recriar a educação.
- Superar o viés passadista, eurocêntrico, machista e racista nos projetos político-pedagógicos e orientações curriculares, para além das aulas em salas, fomentando aproveitamento de parques e ambientes naturais como espaços educativos sustentáveis.
- Recriar a educação como construção de valores e a escola como espaço de criatividade e compartilhamento, de formação cidadã, de uma visão crítica da sociedade, de promoção de uma cultura de paz, solidariedade e colaboração.
- Convocar o poder público para apoiar esse movimento de abrir-ocupar-proteger-recriar, viabilizando condições adequadas, principalmente do ponto de vista sanitário, para que a frequência à escola como espaço comum seja segura para todos os integrantes da comunidade escolar, com todos os cuidados de proteção individual e coletiva.
- Dotar as escolas de condições essenciais para atender professores, estudantes e famílias, apoiando as comunidades onde estão localizadas, dando máxima prioridade ao acesso à internet.
- Articular movimentos sociais e organizações progressistas dos campos da saúde e da educação para apoiar a população neste momento crítico da pandemia, promovendo uma reflexão intersetorial, envolvendo setores da gestão pública para além da educação: saúde, assistência, transporte, planejamento, economia, esportes, cultura, segurança.
- Territorializar o debate e o encaminhamento de soluções, considerando a desigualdade brutal que nos atravessa, a fim de avaliar a complexidade de decisões e ações que não poderão ser uniformes num país com as dimensões e a diversidade do Brasil.
- Reconhecer que as comunidades escolares se compõem de sujeitos capazes de, bem informados, deliberar sobre a reabertura de suas escolas, viabilizando a possibilidade real de reafirmar o princípio constitucional da gestão democrática da escola pública.
- Criar comitês por escola e por município ou localidade, com representação da comunidade escolar, da saúde, da educação, da assistência social e também da sociedade real do território, uma vez que as consequências de novas ignições epidêmicas serão sentidas pela população como um todo.
- Integrar plenamente os sistemas escolares com os serviços do SUS, em especial as equipes multiprofissionais de saúde da Estratégia Saúde da Família, em seu território de atuação, mobilizando ações conjuntas em apoio às comunidades escolares, em particular o Programa Saúde na Escola.
- Garantir os direitos das pessoas com deficiência e impedir que, no momento da pandemia, haja retrocessos nas políticas de educação inclusiva e sejam mantidas as orientações de acordo com a Convenção Internacional assinada pelo Brasil.
- Mobilizar as energias criativas e as forças políticas para promover avanços em direção a uma educação inovadora, que conecte o cotidiano da escola com as questões urgentes da sociedade: respeito aos direitos humanos, valorização da ciência e da informação, reconhecimento de outros saberes do bem viver.
- Recomendar que, em qualquer nível do sistema de educação, seja nacional, estadual ou local, as atividades escolares sejam devidamente coordenadas e amparadas em um plano estratégico nacional de enfrentamento da pandemia da COVID-19, construído de modo participativo, socialmente referenciado e conduzido democraticamente.