Desde o 2 de julho, a Avante – Educação e Mobilização Social tem publicado uma série de conteúdos (entrevistas, vídeos, áudios, matérias) sobre lideranças femininas importantes para nosso estado. Demos início a este trabalho com o objetivo de chamar a atenção para as mulheres que seguem os rastros das suas ancestrais e lutam por justiça social, por equidade, qualidade de vida, preservação de suas culturas e identidades.
Dedicamos a publicação desta potente entrevista realizada com Fátima Gavião, agente comunitária de saúde e uma importante referência para a comunidade do Calabar, em Salvador, como forma de nos solidarizarmos e apoiarmos as mulheres pretas que estão na linha de frente. E de expressarmos nossa profunda tristeza, indignação e clamor por justiça, pela morte de Mãe Bernadete, líder quilombola, assassinada no dia 17 de agosto, em Simões Filho (BA).
Assim como Fátima, a ialorixá Maria Bernadete Pacífico também atuava em sua comunidade, também era uma mulher preta e também honrava a história das mulheres que a antecederam. A líder da comunidade quilombola Pitanga dos Palmares, localizada em Simões Filho (BA), era uma liderança da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Mãe Bernadete defendeu os direitos do quilombo, que atualmente abriga 300 famílias, cobrou incansavelmente justiça pelo assassinato de seu filho, em 2017, e sempre deixou claro que enfrentar a especulação imobiliária a tornava um alvo.
Resistindo pelo cuidado
Fátima, no auge dos seus 63 anos de vida e com a experiência de quem é nascida e criada na comunidade do Calabar, se soma às milhares de vozes de mulheres que estão na luta e que, mesmo encontrando muitas durezas, resistem com afeto.
“As mulheres pretas resistiram pelo cuidado”, afirma, ao nos explicar como é possível resistir a um país racista, que mata cotidianamente sua população e cujas balas e violações de direitos são direcionadas a corpos pretos.
Em entrevista à Avante, Fátima ressalta o importante papel da mulher negra na construção dessa resistência, permeada pelo cuidado mútuo, por processos de conquista de direitos e cobrança por políticas públicas, especialmente, de segurança.
Avante – Há quantos anos você mora no Calabar, Fátima?
Fátima – Eu nasci aqui. Nasci em uma casa ali embaixo (aponta para uma direção). Sai algumas poucas vezes porque minha mãe trabalhava fora e era empregada doméstica. Ficava muito no trabalho com ela, mas nasci aqui e trabalho aqui. Sou agente comunitária de saúde. Tive quatro filhas aqui. Duas estão morando na comunidade. Minhas netas moram aqui, a maioria da família mora aqui.
Avante – Nos conta um pouco sobre a comunidade do Calabar. Para você, o é esse lugar?
Fátima – Para mim, é uma comunidade que puxa trabalho e resistência. É um local onde eu vejo as pessoas trabalhando, aquelas que acordam extremamente cedo e que trabalham de diversas formas, em diversas áreas. É isso que eu percebo quando eu circulo na comunidade, todos os dias. São pessoas saindo para trabalhar, trabalhando em casa, pegando filho na escola, crianças indo para escola, crianças voltando, jovens indo para o trabalho, para faculdade.
É um pulsar. É uma vida agitada, um pessoal, uma comunidade que tem, no começo da manhã e no final da tarde, um fluxo de pessoas que estão saindo e voltando. O que eu consigo enxergar mais forte é o trabalho. São as mulheres, é o menino, são os jovens e homens carregando coisas no carrinho de mão, carregando algum material, carregando compras para outras pessoas. Mas, é também um lugar de resistência.
Avante – E por que um lugar de resistência?
Fátima – Enxergo dessa forma porque nós estamos cercados por prédios, que foram chegando aqui nos anos 70, fim dos anos 60. Mas, a comunidade do Calabar permaneceu. Outras comunidades no entorno já saíram, foram transferidas, acabaram ou mudaram de localidade. O Calabar está firmado aqui entre a Centenário, Barra, Ondina e Cardeal da Silva.
Então, eu acho que isso é uma resistência, pela luta que teve dos jovens dentro da comunidade por melhorias, por melhores condições de vida, para ter um posto de saúde, uma escola, uma creche, saneamento básico. Aqui tinha muito esgoto a céu aberto. Tudo que nós temos na comunidade foi resultado de reivindicações, de luta e de caminhadas, passeatas, mobilização de moradores que fizeram com que a comunidade se firmasse no local. É resistência por isso.
Avante – Vocês lutaram por esse bem comum e vêm lutando para construir a comunidade. Como você se descreve como mulher nesta luta?
Fátima – Eu sou uma mulher preta, que trago na minha ancestralidade essa luta das mulheres. A história que eu escuto das mulheres da minha família era que criavam as filhas de outras pessoas, então, isso ficou muito forte. Como é cuidar dos outros. Minha avó, minha bisavó cuidavam do filho da vizinha, da filha da prima E da filha da irmã. As mulheres pretas resistiram nesse cuidado.
Avante – Quais são as lutas do Calabar de hoje?
Fátima – Então, primeiro a gente precisa segurar tudo que a gente já conquistou. Temos que manter a vigilância, manter o que temos e melhorar e ampliar as conquistas que nós já tivemos. Precisamos de políticas públicas para as periferias, para as comunidades empobrecidas.
A violência é uma coisa que nos afeta muito, que tem nos adoecido enquanto moradores. Eu digo que, a maioria, mulheres porque a mulher tem esse papel, acho que natural, esse acolher na alma, de colher dores e ter nos ombros a responsabilidade pela vida. Pensar em vida é pensar nessas mulheres.
Avante – E sobre a questão da violência. Como tem sido esse contexto no Calabar?
Fátima – A questão da violência que tem aumentado e que faz com que as mulheres estejam adoecendo. As mulheres estão fragilizadas, estão assustadas e a doença mental tem tomado conta. Não que os homens também não sintam, e também os homens são a linha de frente, principalmente, os jovens vivem tensos. Imagine ser negro na comunidade onde abordagem, geralmente, é, com uma certa violência. Temos crianças que estão crescendo assustadas com toda essa violência.
O maior desafio que a gente tem é se reunir e pedir ao Estado que tenha uma política pública de segurança para as comunidades que estão entre conflitos. A gente está vendo agora as invasões do pessoal de fora que quer disputar território. Tem um revezamento de violência, de um lado, e de outro, a polícia tem, na maioria das vezes e não vou dizer que é sempre, um tipo de abordagem que é violenta.
Precisamos de uma política de segurança voltada para essas comunidades. É preciso ver como chegar nas comunidades. Seria muito interessante que pudesse chegar também com desenvolvimento com políticas sociais, projetos sociais – não aqueles que são retalhados e que atingem metade ou um jovem com idade e estudo, mas pensar na juventude como um todo, na inclusão de toda juventude. Mas, a educação é que pode melhorar bastante esse avanço da violência.