As origens dos conflitos que assolam as relações nos contextos onde estão inseridas crianças e adolescentes são as mais variadas possíveis. Mas os impactos são sentidos em escala, da relação familiar à vida comunitária, no bairro, na cidade, no País. E quando dois ou mais não conseguem se entender, entra um terceiro, geralmente o braço da justiça para mediar as negociações e determinar deveres, para a garantia de direitos. Foi essa a função da parceria entre a ONG Tamo Juntas com a Avante – Educação e Mobilização Social, por meio do projeto Estação Subúrbio – nos trilhos dos direitos, realizado em parceria com a Kindernothilfe (KNH). As advogadas que integram o coletivo de profissionais Tamo Juntas realizaram um mutirão jurídico na Ocupação Quilombo do Paraíso no dia 28 de abril para dar encaminhamento às demandas das mulheres da comunidade.
“Foram 11 atendimentos realizados em um mesmo dia. Alguns de pensão e, assustadoramente, a maioria de regularização de guarda, muitas por irmãs e avós”, conta Laina Crisostomo, presidente da ONG Tamo Juntas, que se surpreendeu com o perfil da maioria das demanda, pois “esperávamos que fossem questões relativas à pensão”, disse. Ela explica que esse é o tipo de situação que dificulta o acesso a direitos básicos de crianças e adolescentes: “na ausência da guarda oficial da criança, as mulheres que estão com elas não podem, de fato, realizar inúmeras ações, como inclusão dessas crianças em programas sociais, escola, posto de saúde”.
Mari Arlen dos Santos, moradora da Ocupação Quilombo do Paraíso, atendida pelo coletivo, vivencia essa dificuldade no dia a dia. Ela teve que assumir os cuidados da irmã com a morte da mãe, há quatro anos. Não ter a guarda legal da criança, na época com seis anos, lhe trouxe e traz até hoje muitos percalços na criação da menina. “Logo que minha mãe faleceu eu queria matriculá-la na escola e não pude. Mesmo com o óbito de minha mãe em mãos não pude matricular minha irmã, tive que ir ao conselho tutelar, que me deu uma autorização para fazer isso. Até hoje, para renovar a matrícula, tenho que apresentar o papel do conselho tutelar. E muitas outras coisas. Eu quero, por exemplo, colocá-la num curso e quando perguntam se ela tem mãe, eu apresento o óbito e me dizem que eu tenho que ter a guarda. Todos dizem isso. Eu explico que estou cuidando disso e apresento o papel do Conselho Tutelar. É tudo muito demorado e a pessoa que não tem recursos tem que esperar, né?”, conta Mari Arlen, que deu entrada na solicitação de guarda assim que sua mãe faleceu.
Com a ida da Tamo Juntas na Ocupação Quilombo do Paraíso as esperanças de Mari foram renovadas. “Pra mim foi uma oportunidade, minha situação é urgente e eu já estou há três anos nessa busca, sem conseguir. Tenho ido à vara da família, sem conseguir essa guarda todo esse tempo, marco a audiência, chego lá e a advogada não comparece, e eu gastando muito de transporte para resolver isso. Agora, as meninas aparecerem aqui e me dão essa oportunidade”, disse Mari Arlen.
Acesso
O acesso à justiça é um desafio hoje no país para qualquer cidadão e à medida que o poder aquisitivo cai a garantia desse direito se enfraquece na mesma proporção. O primeiro obstáculo a ser superado é conseguir um advogado que se dedique à sua causa. “Quando você precisa de um advogado, alguma coisa da justiça, demora muito. Então, é uma facilidade pra gente vir um grupo de advogadas pra comunidade e nos possibilitar abrir o verbo e dizer qual o problema que precisa ser resolvido”, disse D. Vera Lúcia Nunes da Cruz, que está com um processo correndo na justiça há dois anos, desde o falecimento de seu marido. Ela conta que ele recebia dinheiro na boca do caixa e, com seu falecimento, o dinheiro ficou preso sem que ela pudesse fazer a retirada. “Tive que solicitar advogado na Defensoria Pública para receber esse dinheiro e até hoje o processo rola e nada da Defensoria Pública me informar de nada. Para ver o processo tem um negócio de uma senha para ter acesso que só o advogado pode resolver. Quando meu marido faleceu eu tive que regularizar a união estável para ter acesso ao processo, mas aguardo o resultado até hoje. Agora é ver se a Tamo Juntas consegue resolver. Passei uma procuração pra elas”, conta D. Vera.
Já Jocilene Alves dos Santos, entrou com solicitação para regularizar a pensão alimentícia de uma de suas filhas (seis anos). “Eu estava precisando da ajuda da justiça. O pai da minha filha, nesses seis anos, nunca deu nada. Quando falo com ele, diz que vai dar, que vai dar, e nunca dá”. A primeira tentativa de obter ajuda da justiça aconteceu quando ainda morava no interior, onde o acesso aos direitos, em alguns casos, é ainda mais desafiador. “Eu fui, entreguei os papeis à advogada, mas no interior o fórum é em outro município e é ruim, não é que nem aqui, avançado”, disse. E, assim, há mais de dois anos Jocilene tenta resolver essa pendência, sem resultados. Orientada pelas advogadas do coletivo Tamo Juntas, ela ficou de entregar os comprovantes de residência e de gastos com a filha para apresentar ao juiz.
Ivanna Castro, consultora associada da Avante e coordenadora do Estação Subúrbio disse que a parceria com a Tamo Juntas foi de imensa importância para o projeto. “A proposta de oferecer orientação jurídica para questões que são geradoras de conflitos e violações de direitos como são: guarda familiar e pensão alimentícia, traz, para todos os participantes do projeto possibilidade real de resolução pacífica de problemas que atingem a vida de várias crianças e adolescentes”. Ela conta, ainda, que a ação ajuda a fortalecer uma rede colaborativa entre organizações sociais. “Essa atitude de colaboração coletiva é de extrema importância, sobretudo na atual conjuntura do nosso País e no alcance do resultado que mais ansiamos – a transformação da realidade dessas pessoas”, disse.
As mulheres que foram atendidas pelo mutirão entregaram os documentos assinaram as procurações para ingresso com algumas ações, autorizando o coletivo Tamo Juntas a atuar junto à justiça. E nos casos em que já há uma ação em andamento, o coletivo irá assumir a causa.
TAMO JUNTAS
A Tamo Juntas vem desempenhando um papel de grande importância na vida de muitas mulheres soteropolitanas, mas também de diversas partes do país. A ONG é um coletivo de mulheres que dispões seus serviços profissionais para colaborar na garantia de direitos de outras mulheres, entre elas: assistentes sociais, psicólogas e advogadas. O grupo nasceu da iniciativa da advogada feminista Laina Crisostomo, em Salvador, e hoje tem sua atuação ampliada para 22 estados brasileiros.
O coletivo estará presente, novamente em parceria com o projeto Estação Subúrbio, na sede da Escola Laboratório da Prefeitura de Salvador, em Coutos, no Subúrbio Ferroviário, no dia 25 de maio.
Estação Subúrbio
A Avante – Educação e Mobilização Social, em parceria com a instituição alemã Kindernothilfe atua no Quilombo do Paraíso (Colinas de Periperi) e no bairro de Coutos desde 2017 com ações que visam aumentar o envolvimento de atores da comunidade na defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, com estratégias de combate à violência comunitária por meio da convivência com a arte, a cultura e o lazer, especialmente no que se refere às crianças e adolescentes. O projeto Estação Subúrbio – nos trilhos dos direitos é resultado dessa parceria e atuará no Subúrbio Ferroviário de Salvador até 2021.