O sol brilhava no céu depois de dias de chuvas intensas em Salvador. Era uma manhã de sexta-feira de maio e os moradores pouco a pouco saíam de suas casas para aguardar a distribuição das 58 cestas básicas doadas pela Avante – Educação e Mobilização Social. Adultos e idosos da comunidade Ocupação Quilombo do Paraíso receberam os donativos, enquanto foram entregues às crianças 27 kits de colorir – com papéis, canetinhas coloridas e lápis de cera – resultado da arrecadação de doações em dinheiro feitas por funcionários, parceiros e colaboradores da instituição, para a campanha interna do aniversário solidário dos 24 anos da Avante, celebrado em 1° de maio.
Em todo o mundo, gestos de solidariedade como esse estão mobilizando multidões, pessoas e coletivos, para garantir que as populações mais carentes não passem fome devido às sérias restrições impostas pelo surto do novo coronavírus, que já contaminou mais de 260 mil pessoas somente no Brasil, ultrapassando 17,5 mil mortes no País – no estado da Bahia foram mais de 300 óbitos (maio/2020) desde o mês de fevereiro, quando a doença se manifestou no País. Em todo o mundo, as estatísticas indicam mais de 300 mil óbitos causadas pelo COVID – 19.
Acontece que, apesar de seu alcance universal, a pandemia e seus impactos são muito mais vorazes e violentos entre as populações marginalizadas e excluídas. Não apenas pela maior vulnerabilidade ao contágio, como por depender, essencialmente, dos serviços públicos para o tratamento, com menos acesso e possibilidade de cura. Sendo assim, negros, quilombolas e indígenas morrem mais e mais rápido, reforçando os mecanismos da já conhecida necropolítica, um termo criado por Achille Mbembe, filósofo negro, historiador, teórico político e professor universitário da República de Camarões. Segundo ele, é aplicável quando o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer, negando-se a humanidade do outro, promovendo uma diversidade de violências e agressões que levam à morte.
Donas de casa, auxiliares de serviços gerais, faxineiras, manicures, porteiros, vendedores ambulantes … são algumas das atividades realizadas pelos moradores da Ocupação. E muitos deles, por conta do isolamento social imposto pela doença, perderam seus “bicos informais” e estão sem renda. “Aos efeitos do COVID-19 somam-se vulnerabilidade financeira, fome, violência doméstica e outras violações de direitos. Neste momento, nossa preocupação é reduzir ao menos um dos impactos, o econômico, contribuindo para o isolamento social como estratégia preventiva, uma vez que fica mais possível pensar em isolamento com comida na mesa”, disse a consultora associada da Avante, Ana Oliva Marcilio, idealizadora da campanha de aniversário solidário da instituição e coordenadora do projeto Estação Subúrbio – nos trilhos dos direitos (Avante e KNH) – por meio do qual a Avante atua desde 2017 na Ocupação.
“Por mais que a gente viva num País preconceituoso como o nosso, a solidariedade é o que conta aqui dentro. Nesse momento, a gente está vendo que pode haver a diferença que for, mas a solidariedade está em primeiro lugar. A gente pode se comover com a dor do próximo”, disse Ana Maria de Jesus, 42 anos, mãe de Graciele, 15, e Deidmar, 7 anos. Moradora da Ocupação há 7,5 anos, Ana Maria se encontra desempregada. Ela, que sofreu maus tratos na infância e que começou a trabalhar aos 13 anos, como babá, revelou seu maior sonho: “Que meus filhos cresçam com saúde e a dignidade intacta”, declarou a moradora.
Estação Subúrbio – O filho caçula de Ana Maria, Deidmar, é uma das crianças que participam do projeto Estação Subúrbio. O garoto brincava ao ar livre no dia da distribuição das cestas básicas e comentou que sentia falta das brincadeiras, de jogar bola, atividades do brincar promovidas pelos educadores brincantes do Projeto. Sobre o que aprendeu no Estação Subúrbio, Deidmar falou: “Eu não gosto mais de brigar”. E a mãe de Deidmar também aprendeu a não usar a violência para repreender alguma atitude indesejada do filho: “Eu aprendi que o direito da criança está em primeiro lugar e a ser tolerante. Eu não era. Eu era muito explosiva”, recorda Ana Maria.
No Estação Subúrbio, o brincar é a estratégia central para o enfrentamento à violência comunitária e promoção de direitos de crianças e adolescentes. No momento, as atividades estão suspensas, mas serão retomadas após o período de isolamento social imposto pela pandemia.